Sunday, October 16, 2016

Meditações em Moloch

Publicado em 30 de julho de 2014, por SCOTT ALEXANDER

Tradução: Cauê Laratta
Revisão: Uriel Alexis


I.

Exemplos esparsos de minhas leituras do mês: "Superintelligence", de Nick Bostrom; "Moloch", de Allan Ginsberg; “Sobre Gnon”, de Nick Land.

A cronologia é um mestre severo. Você lê três coisas completamente não-relacionadas e elas começam a parecer obviamente conectadas, estilo homem-cego-e-elefante, tateando diferentes aspectos do mesmo ponto diabolicamente difícil de expressar.

Este post sou eu tentando atirar o elefante em você a cento e cinquenta quilômetros por hora, exceto que divago para poesia e misticismo e ele acaba virando um elefante confuso, carregado de simbolismos, críticas literárias bizarras e futurologia marginal. Se você quer algo sóbrio, vá ler de novo aquele sobre os SSRIs.

Um segundo aviso, mais relevante: este post é muito longo.



II.

Ainda aqui? Comecemos por Ginsberg:

Que esfinge de cimento e alumínio arrebentou seus crânios e devorou seus miolos e sua imaginação? 
Moloch! Solidão! Imundície! Feiúra! Lixeiras e dólares inacessíveis! Crianças gritando sob as escadas! Garotos chorando nos exércitos! Velhos pranteando-se nos parques! 
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o sem-amor! Moloch mental! Moloch o pesado juiz dos homens!  
Moloch a prisão incompreensível! Moloch a cadeia de ossos desalmada e o Congresso de mágoas! Moloch cujos edifícios são julgamentos! Moloch a vasta pedra da guerra! Moloch os governos atordoados! 
Moloch cuja mente é pura maquinária! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é um dínamo canibal! Moloch cuja orelha é uma tumba esfumaçada! 
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch cujos arranha-céus postam-se nas ruas como infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonham e coaxam na névoa! Moloch cujas chaminés e antenas coroam as cidades! 
Moloch cujo amor é óleo e pedra sem fim! Moloch cuja alma são eletricidade e bancos! Moloch cuja pobreza é o espectro da genialidade! Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio assexuado! Moloch cujo nome é a Mente! 
Moloch em quem me sento sozinho! Moloch em quem sonho Anjos! Louco em Moloch! Pervertido em Moloch! Sem amor e sem homens em Moloch! 
Moloch que penetrou minha alma cedo! Moloch em quem sou uma consciência sem corpo! Moloch que me aterrorizou além do meu êxtase natural! Moloch que eu abandono! Acorde, Moloch! Luz jorrando por todo o céu! 
Moloch! Moloch! Apartamentos robôs! subúrbios invisíveis! tesouros esqueléticos! capitais cegas! indústrias demoníacas! nações espectrais! hospícios invencíveis! caralhos de granito! bombas monstruosas! 
Eles quebraram suas costas erguendo Moloch aos Céus! Calçadas, árvores, rádios, toneladas! erguendo a cidade ao Paraíso que existe e que está em tudo que nos cerca! 
Visões! presságios! alucinações! milagres! êxtases! atirados ao fluxo do rio americano! 
Sonhos! adorações! iluminações! religiões! toda a batelada de besteiras sensíveis! 
Rupturas! além do rio! viradas e crucificações! inundação abaixo! Viagens! Epifanias! Desesperos! Suicídios e rugidos decanos! Mentes! Novos amores! Geração insana! soterrados pelas rochas do Tempo! 
Real e sagrada gargalhada no rio! Eles viram tudo! os olhos selvagens! os berros sagrados! Eles disseram adeus! Atiraram-se dos telhados! para a solidão! acenando! carregando flores! Rio abaixo! rua adentro!

O que sempre me impressionou nesse poema é sua concepção de civilização como uma entidade individual. Você quase consegue enxergá-lo, com seus dedos de exército e seus olhos de arranha-céu…

Muitos críticos dizem que Moloch representa o capitalismo. Essa é definitivamente uma peça dele, uma grande peça até. Mas não encaixa exatamente. Capitalismo, cujo destino é uma nuvem de hidrogênio assexuado? Capitalismo no qual sou uma consciência sem corpo? Capitalismo, logo, caralhos de granito?

Moloch é apresentado como a resposta para uma pergunta — a pergunta de C. S. Lewis em “Hierarquia dos Filósofos” — o que faz isso? A Terra poderia ser justa, e todos os homens gratos e sábios. Ao invés, temos prisões, esgotos, asilos. Que esfinge de cimento e alumínio arrebenta seus crânios e devora sua imaginação?

E Ginsberg responde: Moloch o faz.

Há uma passagem no Principia Discordia em que Malaclypse se queixa à Deusa sobre os males da sociedade humana. “Todos estão se machucando, o planeta está assolado por injustiças, sociedades inteiras pilham grupos de seu próprio povo, mães aprisionam filhos, crianças perecem enquanto irmãos guerreiam.”

A Deusa responde: “Qual é o problema, se é isso que vocês querem fazer?”

Malaclypse: “Mas ninguém quer isso! Todos odeiam isso!”

Deusa: “Ah. Bom, então parem.”

A questão implícita é — se todos odeiam o atual sistema, quem o perpetua? E Ginsberg responde: “Moloch”. É poderoso não porque é correto — ninguém literalmente acredita que um antigo demônio cartaginense é a causa de tudo — mas porque pensar no sistema como um agente abre uma brecha para revelar até que ponto o sistema não é um agente.

Bostrom faz uma referência casual à possibilidade de uma distopia sem ditadores, que cada cidadão — incluindo a elite — odeia, mas que mesmo assim perdura, invencível. Não é tão difícil imaginar um Estado assim. Imagine um país com duas regras: primeiro, todas as pessoas devem passar oito horas por dia aplicando fortes choques elétricos em si mesmas. Segundo, se alguém quebrar alguma regra (incluindo essa), ou pronunciar-se contra o sistema, ou deixar de promovê-lo, todos os cidadãos devem se unir para matar essa pessoa. Suponha que essas regras estejam suficientemente estabelecidas por tradição e que todos os cidadãos esperem que elas sejam aplicadas.

Então você se dá choques oito horas por dia, porque você sabe que, se não o fizer, todos irão se unir para te matar, porque se eles não o fizerem, todos os outros vão se unir para matar eles, e assim em diante. Em suma: todos os cidadãos odeiam o sistema, mas por falta de um bom mecanismo de coordenação, ele perdura. De um ponto-de-vista-divino, podemos modificar o sistema para “todos concordam em parar de fazer isso imediatamente”, mas ninguém dentro do sistema consegue promover tal transição sem se expor a uma enorme dose de risco.


Mas claro, esse exemplo é meio maquinado. Então vamos citar uma dezena de exemplos reais de armadilhas multipolares semelhantes, pra realmente martelar o quão importante isso é.

1. O Dilema do Prisioneiro, famoso embate entre dois libertários incrivelmente idiotas que sempre acabam dedurando um ao outro. É possível um resultado muito melhor, para ambos, se eles conseguirem desvendar a coordenação correta. Mas coordenar é difícil. De um ponto-de-vista-divino, podemos concordar que cooperar-cooperar gera um resultado melhor que dedurar-dedurar, mas nenhum dos prisioneiros que está dentro do sistema consegue tomar essa decisão.


2. Leilões de dólares. Eu escrevi sobre esse e outros exemplos do mesmo princípio em “Game Theory As A Dark Art”. Usando algumas bizarras regras de leilão, um indivíduo pode se aproveitar de um sistema falho de coordenação para fazer alguém pagar $10 por uma nota de $1. De um ponto-de-vista-divino, claramente ninguém deveria pagar $10 por uma nota que vale $1. Mas, de dentro do sistema, cada passo dado no sentido dessa decisão pode parecer perfeitamente lógico.

(Lixeiras e dólares inacessíveis!)


3. A história do criadouro de peixes do meu “Non-Libertarian FAQ 2.0”:

A fins de um experimento hipotético, vamos considerar a piscicultura (criação de peixes) em um determinado lago. Imagine que nesse lago há mil criadouros idênticos, cada qual pertencente a mil criadores concorrentes. Cada criadouro ganha um lucro de $1000/mês. Durante um tempo, tudo vai bem. 
Mas cada criadouro produz dejetos, que poluem as águas do lago. Digamos que cada criadouro produza dejetos suficientes para reduzir a produtividade total do lago em $1/mês. 
Ou seja: mil criadouros produzindo dejetos reduzem a produtividade do lago em $1000/mês, o que significa que nenhum dos criadores ganhará dinheiro. Capitalismo ao resgate: alguém inventa um complexo sistema de filtragem que impede a contaminação da água. Esse sistema custa $300/mês para operar. Todos os criadores voluntariamente o instalam, a poluição termina, e os criadouros seguem fazendo lucros da ordem de $700/mês — uma quantia ainda considerável. 
Mas um criador (vamos chamá-lo de Steve) se cansa de gastar dinheiro para manter seu filtro funcionando e o desconecta. Agora, o lago recebe apenas os dejetos de um único criadouro, reduzindo sua produtividade em apenas $1. Steve lucra $999/mês, e todos os outros lucram $699/mês. 
Todos os outros percebem que Steve está sendo muito mais lucrativo que eles, porque ele não está gastando dinheiro com o sistema de filtragem. Então, eles também desconectam seus filtros. 
Uma vez que 400 criadores desconectarem seus filtros, Steve estará ganhando $600/mês — menos do que ele ganharia se todos, inclusive ele, tivessem mantido os filtros funcionando! E os pobres e virtuosos criadores que continuaram usando seus filtros estão ganhando apenas $300/mês. Então Steve vira para todo mundo e diz: “Galera! A gente precisa fazer um pacto voluntário para usar os filtros! Do contrário a produtividade de todos irá cair!”. 
Todos concordam com ele e assinam o Pacto do Filtro, exceto por um cara, que é meio cuzeta. Vamos chamá-lo de Mike. Então, Mike ganha $999/mês, enquanto todos os outros ganham $699/mês. Aos poucos, as pessoas começarão a pensar que precisam ganhar como Mike, e passam a desconectar seus filtros para ganhar aqueles $300 extras… 
Uma pessoa egoísta nunca terá incentivo para usar o filtro. Uma pessoa egoísta tem um certo incentivo para assinar um pacto que obrigue todos a usar o filtro, mas em muitos casos um incentivo ainda maior para esperar que todos assinem e então optar ele mesmo por não assinar. Isso pode levar a um desequilíbrio indesejável em que ninguém terá incentivos para assinar o pacto.

Quanto mais eu penso nesse exemplo, mais sinto que ele está no cerne da minha oposição ao libertarianismo, e que o “Non-Libertariam FAQ 3.0” será apenas esse exemplo copiado-e-colado duzentas vezes. De um ponto-de-vista-divino, podemos dizer que poluir o lago gera consequências ruins para todos. De dentro do sistema, nenhum indivíduo é capaz de prevenir a poluição do lago, e manter o filtro funcionando talvez não seja uma ideia tão boa.


4. A Armadilha Malthusiana, ao menos em seus limites puramente teóricos. Suponha que você é um dos primeiros ratos introduzidos em uma ilha virgem. Ela é cheia de plantas gostosinhas e você vive uma vida idílica, perambulando por aí, comendo e compondo grandes obras de arte (se você for um daqueles ratos do “The Rats of NIMH”).

Você vive uma vida longa e tem uma dúzia de filhotes. Todos eles também tem uma dúzia de filhotes, e assim em diante. Em algumas gerações, a ilha passa a ter dez mil ratos e atinge a sua capacidade populacional máxima. Agora, não há mais espaço ou comida para garantir a sobrevivência, e uma certa porcentagem de cada nova geração deve morrer para que a população permaneça na casa dos dez mil.

Então, um certo grupo de ratos decide abandonar a arte para dedicar mais tempo a se especializar em sobrevivência. A cada nova geração, esse grupo levará uma ligeira vantagem sobre os outros, e seus membros morrerão em menor proporção, até que, após um certo tempo, nenhum rato estará mais fazendo arte alguma, e qualquer grupo de ratos que tentar reimplantar esse estilo de vida será extinto rapidamente.

Isso não vale apenas para arte. Qualquer grupo que for mais malandro, mal-intencionado ou focado em sobrevivência que o mainstream eventualmente dominará a ilha. Se um grupo de ratos voluntariamente decidir limitar sua prole a dois filhotes por casal, a fim de reduzir a superpopulação, esse grupo será varrido da existência pelos concorrentes mais numerosos. Se um grupo de ratos decidir praticar canibalismo, e descobrir que tal prática os dá uma vantagem sobre os outros, esse grupo eventualmente dominará a ilha e a prática será fixada.

Se uns ratos-cientistas descobrirem que a exploração dos recursos alimentícios da ilha está acelerando perigosamente e que em breve todos serão extintos, alguns ratos podem até tentar reduzir seu consumo de alimentos apenas ao nível da subsistência, mas esses ratos serão eliminados pelos seus primos egoístas. Eventualmente, os alimentos irão acabar, a maioria dos ratos irá morrer, e o ciclo começará de novo. Qualquer grupo de ratos defendendo uma ação que possa colocar fim a esse ciclo também será eliminado por aqueles ratos para quem pensar em qualquer coisa é perder um tempo precioso, que poderia estar sendo gasto para competir mais e consumir mais.

Por várias razões, a evolução não é tão malthusiana quanto nesse caso, mas ele fornece um exemplo prototípico que podemos aplicar a outros casos, a fim de enxergar o mesmo mecanismo de atuação. De um ponto-de-vista-divino, é fácil dizer que os ratos deveriam manter a população em níveis confortavelmente baixos. De dentro do sistema, cada rato seguirá seu imperativo genético e a ilha acabará vivendo eternamente em um ciclo de explosão e implosão populacional.


5. Capitalismo. Imagine um capitalista competindo num mercado ferrenho. Ele emprega trabalhadores em uma fabriqueta de roupas, as quais vende por um lucro mínimo. Talvez ele desejasse pagar mais a seus funcionários, ou dar a eles melhores condições de trabalho. Mas ele não pode, porque isso aumentaria os preços dos seus produtos, ele seria eliminado pelos concorrentes e iria à falência. Talvez alguns de seus rivais sejam caras legais que também gostariam de pagar mais a seus funcionários, mas a não ser que eles tenham alguma garantia férrea de que nenhum deles irá reduzir preços, eles não poderão fazer tal acordo.

Como os ratos, que gradualmente perdem todos os valores exceto a pura competição, empresas em um ambiente econômico suficientemente competitivo são forçadas a abandonar todos os valores exceto os que otimizam pelo lucro, do contrário serão eliminadas por aquelas que otimizaram-pelo-lucro de maneira mais eficiente, e logo podem fornecer o mesmo produto a um preço menor.

(Eu não sei ao certo o quanto as pessoas apreciam analogias entre capitalismo e evolução. Empresas aptas — aquelas que fazem com que o consumidor queira comprar seus produtos — sobrevivem, expandem e inspiram empreitadas futuras, enquanto empresas inaptas — aquelas de quem ninguém quer comprar — vão à falência e morrem junto com seu DNA empresarial. As razões pelas quais a Natureza é sangue e dentes e garras são as mesmas pelas quais o mercado é impiedoso e explorador).

De um ponto-de-vista-divino, podemos acordar um mercado amigável, no qual todas as empresas pagam a seus funcionários um salário decente. De dentro do sistema, é impossível fazê-lo.


(Moloch cujo amor é óleo e pedra sem fim! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente!)


6. A Armadilha dos Dois Salários, que discuti recentemente neste blog. Ela postula que uma competição suficientemente intensa por casas perto de bons colégios implica no sacrifício de diversos outros valores — tempo com os filhos, seguridade financeira — para que se possa otimizar pela habilidade-em-comprar-casas, ou do contrário ser delegado às periferias.

De um ponto-de-vista-divino, se todo mundo concordar em não adquirir um segundo emprego para vencer a competição por casas melhores, todos inevitavelmente acabarão nas mesmas casas, mas tendo que trabalhar em apenas um emprego. De dentro do sistema — e com a ausência de um governo que literalmente proíba trabalhar em dois empregos — todos que não conseguirem um segundo emprego serão passados para trás.

(Apartamentos-robôs! Subúrbios invisíveis!)


7. Agricultura. Jared Diamond a considera o maior erro da história da humanidade. Independente de ter sido um erro ou não, a agricultura não foi um acidente — civilizações agrárias simplesmente superaram as nômades, inevitável e irresistivelmente, armadilha malthusiana clássica. Talvez caçar-e-colher fosse mais agradável, gerasse uma expectativa de vida maior e fosse mais fértil para a prosperidade humana, mas num estado de competição suficientemente intensa entre povos no qual a agricultura — com todas as suas doenças e opressão e pestilência — é a opção mais competitiva, todo mundo deve invariavelmente se tornar agricultor, ou do contrário seguir o caminho dos índios Comanche.

De um ponto-de-vista-divino, é fácil enxergar que todos deveriam manter a opção mais agradável de caça-e-coleta. De dentro do sistema, cada tribo só pode optar por tornar-se agrícola, ou inevitavelmente morrer.


8. Corridas Armamentistas. Grandes países gastam entre 5% e 30% do seu orçamento em defesa. Na ausência da guerra — uma condição que em boa parte se verificou nos últimos cinquenta anos — tudo que isso faz é drenar dinheiro que poderia ir para infraestrutura, saúde, educação ou crescimento econômico. Mas qualquer país que não gaste o suficiente em defesa está se arriscando a ser invadido por um país vizinho que o faça. Por isso, quase todos os países buscam investir algum dinheiro em defesa.

De um ponto-de-vista-divino, a melhor solução é a paz mundial e que nenhum país tenha que ter um exército. De dentro do sistema, nenhum país pode unilateralmente garantir isso, logo a melhor opção é continuar gastando dinheiro em mísseis que ficarão guardados em silos sem nunca serem usados.


9. Câncer. O corpo humano é supostamente feito de células que vivem harmoniosamente, somando seus recursos para o bem-maior do organismo. Se uma célula se desgarra desse equilíbrio e investe seus recursos em fazer cópias dela mesma, ela e seus descendentes irão prosperar, eventualmente superando as outras células e tomando conta de todo o organismo — o qual, nesse ponto, morre. Ou a situação pode se repetir, com células cancerígenas rebelando-se contra o resto do tumor, retardando seu crescimento e fazendo com que o tumor permaneça estagnado.

De um ponto-de-vista divino, a melhor solução é que todas as células cooperem entre si, para que todas elas não morram. De dentro do sistema, células cancerígenas podem se proliferar e eliminar as outras — e apenas a existência do sistema imunológico reprime o incentivo natural para que elas o façam.


10. A “corrida para o fundo” — que nada mais é que uma guerra fiscal — descreve uma situação política em que algumas jurisdições atraem negócios prometendo impostos menores e menos regulamentação. O resultado final é que, ou os reguladores otimizam para a competição — invariavelmente, através de taxação e fiscalização mínimas — ou eles perdem seus negócios, fontes de renda e empregos para aqueles que o fizerem (eventualmente sendo expulsos ou repostos por governos mais condescendentes).

Ainda que esse último exemplo tenha herdado o nome, todos os cenários aqui citados são uma espécie de "corrida para o fundo". Uma vez que um agente descubra como se tornar mais competitivo através do sacrifício de um valor comum, todos os outros competidores também terão que sacrificar esse valor, do contrário serão passados para trás por aqueles com menos escrúpulos. Assim, a tendência é que o sistema eventualmente volte a ser igualmente competitivo — mas o valor sacrificado se perde para sempre. De um ponto-de-vista-divino, os competidores sabem que todos acabarão pior se jogarem o jogo, mas de dentro do sistema não há coordenação suficiente para que evitar isso seja possível.

Antes que a gente continue, existe uma forma levemente diferente desse tipo de armadilha que vale a pena ser investigada. Nela, a competição é mantida sob controle por alguma força externa — normalmente um estigma social. Como resultado, não ocorre exatamente uma "corrida para o fundo". O sistema continua funcionando em um nível relativamente satisfatório, mas otimizar para ele é impossível e recursos acabam sendo continuamente desperdiçados sem nenhum motivo. Para você não ficar exausto antes mesmo da gente começar, vou me limitar a quatro exemplos.


11. Educação. Em meu artigo sobre filosofia reacionária, eu falo da minha frustração com a reforma da educação: 

As pessoas perguntam por que não podemos reformar o sistema educacional. Mas nesse exato momento o incentivo dos estudantes é entrar na faculdade mais prestigiada que puderem para conseguir um emprego — independente se irão ou não aprender alguma coisa. O incentivo dos empregadores é contratar estudantes das faculdades mais prestigiadas que puderem, para que eles possam defender suas decisões perante seus chefes caso algo dê errado — independente dos valores que as faculdades possam ou não prover. E o incentivo das faculdades é fazer o que for necessário para conseguir mais prestígio, medido através da mídia e de rankings mundiais — independente se isso vai ou não ajudar os estudantes. Esse cenário leva a grandes desperdícios e um sistema pobre de educação? Sim. Poderia o Deus da Educação se dar conta disso e fazer uns Decretos Educacionais que levassem a um sistema amplamente mais eficiente? Facilmente! Mas como não há um Deus da Educação, todo mundo irá simplesmente seguir seus incentivos, que são apenas parcialmente correlacionados com a educação em si.

De um ponto-de-vista-divino, é fácil dizer coisas como “estudantes só deveriam entrar em faculdades se sentirem que vão extrair algo delas, e empregadores deveriam contratar baseando-se apenas em competência, independente de que faculdade seus funcionários frequentaram”. De dentro do sistema, todos já estão seguindo seus incentivos da maneira correta, e a não ser que os incentivos mudem, o sistema não mudará.


12. Ciência. Mesmo artigo: 

A comunidade moderna de pesquisadores sabe que não está produzindo a melhor ciência que poderia. Há muito viés de publicação, estatísticas são produzidas de maneira confusa e enganadora por pura inércia, e replicações de experimento são frequentemente feitas muito tempo depois, quando são feitas. E de vez em quando alguém diz algo como “Não acredito que as pessoas sejam tão burras que não consigam organizar a Ciência! Tudo que a gente teria que fazer é requisitar um registro prévio dos artigos para evitar o viés de publicação, tornar tal forma poderosa de estatística um novo padrão, e conceder status melhores a cientistas que fazem experimentos de replicação. Seria muito simples e melhoraria enormemente o progresso científico! Eu devo ser mais esperto que todos os cientistas vivos, já que eu sou capaz de pensar nisso e eles não.” 
E sim. Isso funcionaria para o Deus da Ciência. Ele poderia simplesmente baixar um Decreto da Ciência exigindo que todos usem estatísticas corretas, e outro Decreto exigindo experimentos de replicação. 
Mas as coisas que funcionam de um ponto-de-vista-divino não funcionam de dentro do sistema. Nenhum cientista tem o incentivo para, unilateralmente, adotar uma nova técnica estatística para sua pesquisa, já que isso diminuiria as chances de sua pesquisa produzir resultados impressionantes e confundiria todos os outros cientistas. Eles apenas tem o incentivo para querer que os outros o façam, para que eles possam simplesmente seguir depois. E nenhuma publicação científica tem o incentivo para, unilateralmente, adotar registros prévios e publicar resultados negativos, já que seus estudos irão parecer menos interessantes que o das outras publicações, que divulgam apenas descobertas revolucionárias. De dentro do sistema, todo mundo está seguindo seus incentivos e continuará fazendo isso.

13. Corrupção governamental. Eu não conheço ninguém que defenda, como um princípio, que benefícios corporativos cedidos pelo governo sejam uma boa ideia. Mas o governo americano ainda consegue, de alguma maneira, gastar algo em torno de $100 bilhões de dólares por ano com incentivos semelhantes — três vezes mais do que gasta com o health care dos mais pobres, pra se ter uma ideia. Todos aqueles que se familiarizam com o problema chegam à mesma conclusão: parar de conceder benefícios corporativos. Por que isso não acontece?

Governos competem entre si para serem eleitos ou promovidos. E suponhamos que parte do processo de otimizar para a elegibilidade seja também otimizar para receber doações de campanha através de corporações — ou talvez não seja, mas os políticos pensam que é. Políticos que tentarem mexer nos privilégios do bem-estar corporativo podem perder o apoio das corporações e serem vencidos pelos políticos que prometem deixar os benefícios intactos.

Então, ainda que de um ponto-de-vista-divino todo mundo saiba que eliminar benefícios corporativos é a melhor solução, os incentivos de cada indivíduo os forçam a manter o sistema como está.


14. Congresso. Apenas 9% dos americanos gostam dele, o que sugere uma taxa de aprovação menor que a de baratas, piolhos e engarrafamentos. No entanto, 62% das pessoas que sabem quem é seu representante no Congresso o aprovam. Na teoria, deveria ser muito difícil manter um corpo democraticamente eleito com apenas 9% de aprovação por mais de um ciclo eletivo. Na prática, cada representante só possui o incentivo de manter uma boa imagem perante o seu próprio grupo de eleitores, enquanto manda o resto do país às favas — algo em que, aparentemente, eles são muito bons. 

De um ponto-de-vista-divino, cada deputado deveria pensar no que é bom para toda a nação. De dentro do sistema, você faz aquilo que te elege.



III.

Um princípio básico une todas as armadilhas acima. Em uma competição que otimiza para um valor X, surge a oportunidade de sacrificar algum outro valor para melhorar esse X. Aqueles que abraçam a oportunidade prosperam. Aqueles que não abraçam, perecem. Eventualmente, a situação relativa dos competidores retorna a um patamar semelhante, mas a situação absoluta de todos fica pior. O processo continua até que todos os valores que possam ser sacrificados o sejam — em outras palavras, até que a ingenuidade humana não consiga inventar uma maneira de piorar ainda mais as coisas.

Em uma competição suficientemente intensa (1-10), qualquer um que não sacrifique seus valores será passado para trás — lembre dos pobres ratos que se recusaram a abandonar a vida de artista. Essa é a famosa armadilha malthusiana, na qual todo mundo é eventualmente reduzido ao status de “subsistência”.

Em uma competição insuficientemente intensa (11-14), o que observamos é um perverso fracasso da otimização — lembre das publicações científicas que não podem adotar critérios mais rigorosos, ou dos deputados que não conseguem acabar com benefícios corporativos. Esse cenário talvez não reduza os envolvidos à subsistência, mas de uma estranha maneira faz com que seu livre-arbítrio seja raptado.

Todo autor e filósofo digital precisa escrever sua própria utopia. A maioria delas fica realmente bacana. De fato, é grande a possibilidade de que duas utopias diametralmente opostas acabem soando, ambas, melhores que o nosso mundo.

É meio constrangedor que um zé-ninguém aleatório consiga conceber um sistema estatal melhor que aquele em que a gente vive. E, na verdade, não é tão fácil assim. A maior parte dessas utopias simplesmente varre os problemas difíceis para baixo do tapete, e sucumbiria em dez minutos se fosse realmente implantada.

Mas permitam-me sugerir algumas “utopias" que não tem esse tipo de falha.

 - A utopia em que, ao invés do governo conceder um monte de benefícios corporativos, o governo não concede um monte de benefícios corporativos.

 - A utopia em que os exércitos de todos os países são 50% menores, e as economias resultantes são revertidas para infraestrutura.

 - A utopia em que todos os hospitais usam o mesmo sistema eletrônico de registro de exames, ou ao menos sistemas que dialoguem entre si, para que os médicos possam checar os exames que outros médicos já fizeram em você ao invés de solicitar de novo os mesmos exames e te cobrar de novo $5000.

Eu não acredito que existam muitas pessoas que se oporiam a essas utopias. Se elas não estão acontecendo, não é por falta de apoio. Definitivamente não é porque ninguém nunca pensou nelas, já que eu acabei de fazer isso e não espero que minhas "descobertas" sejam recebidas como algo particularmente revolucionário.

Qualquer humano com um QI acima da temperatura ambiente pode conceber uma utopia. A razão pela qual o nosso sistema atual não é uma utopia é que ele não foi concebido por humanos. Assim como podemos observar um terreno seco e a partir disso determinar que formato um rio assumiria se corresse por ele — simplesmente considerando que a água obedece à gravidade — também podemos observar uma civilização e determinar que formato suas instituições irão assumir — simplesmente considerando que pessoas obedecem a incentivos.

E da mesma maneira que os formatos dos rios não são projetados pela beleza ou facilidade de navegação, mas antes pela aleatória formação topográfica do terreno, também as instituições não são projetadas para a prosperidade ou a justiça. Elas são o artefato de condições iniciais completamente randômicas.

E assim como as pessoas podem modificar o terreno e construir canais, elas também podem modificar a paisagem de incentivos para construir instituições melhores. Mas elas só o fazem se forem, também, incentivadas a isso, o que nem sempre acontece. Como resultado, modificações geológicas completamente bizarras acabam tomando forma em alguns lugares.

Ok. Agora vou deixar de lado toda essa chatice de teoria dos jogos para relatar o mais próximo que já tive de uma experiência mística.

Como toda boa experiência mística, aconteceu em Las Vegas. Eu estava no topo de um dos muitos arranha-céus, olhando a cidade abaixo de mim, toda iluminada em meio à escuridão. Se você nunca esteve em Vegas, é realmente impressionante. Edifícios e luzes de todas as variedades se fundem em uma só beleza aglomerada. E me vieram dois pensamentos, muito claros:

É glorioso que a gente possa criar algo assim.

É vergonhoso que o fizemos.

Assim: por qual parâmetro construir gigantescas réplicas indoor de Veneza, Paris, Roma, Egito e Camelot — cheias de tigres albinos, no meio do deserto mais inóspito da América do Norte — seria um uso remotamente sensato dos limitados recursos da nossa civilização?

E me ocorreu que talvez não exista nenhuma filosofia no mundo capaz de endossar a existência de Las Vegas. Até o Objetivismo, que é a filosofia à qual normalmente recorro para justificar os excessos do capitalismo, ao menos é pautado na noção de que o capitalismo melhora a vida das pessoas. Henry Ford foi virtuoso porque ele permitiu que várias pessoas sem-carro adquirissem um carro, e assim tornou suas vidas melhores. O que Vegas faz? Promete dinheiro a um monte de otários e não dá.

Las Vegas não existe por algum tipo de decisão hedônica de otimizar a civilização. Ela existe por causa de uma falha no sistema de recompensa do cérebro, mais a microestrutura de um ambiente regulatório desigual, mais Schelling points. Um planejador central e racional, com um ponto-de-vista-divino, contemplando esses fatos, talvez pensasse: “Hm, o sistema de recompensa do cérebro possui falhas através das quais determinadas tarefas com taxas de risco-benefício ligeiramente negativas obtém uma compensação emocional associada a taxas de risco-benefício ligeiramente positivas, vamos ver se a gente consegue educar as pessoas para evitarem isso”. Alguém de dentro do sistema, seguindo os incentivos criados por esses mesmos fatos, pensa: “Vamos construir uma réplica de Roma de 40 andares de altura, encher ela de tigres albinos e ficar ligeiramente mais rico que as pessoas que não fizerem isso!”.

Assim como o curso de um rio está latente no terreno antes mesmo da primeira gota de chuva, também a existência do Caesar’s Palace estava latente em nossa neurobiologia, economia e sistemas de regulamentação antes mesmo dele existir. O empreiteiro que o construiu estava simplesmente preenchendo as linhas fantasmagóricas com concreto de verdade.

Então temos toda nossa maravilhosa energia cognitiva e tecnológica, todo o brilhantismo da espécie humana, desperdiçados para recitar os versos mal escritos dos nossos receptores celulares e da nossa economia cega, como deuses sendo comandados por um idiota.

Algumas pessoas têm experiências místicas e veem Deus. Ali, em Vegas, eu vi Moloch.

(Moloch cuja mente é pura maquinária! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente!

Moloch cuja alma são eletricidade e bancos! Moloch cujos arranha-céus postam-se nas ruas como infinitos Jeovás!

Moloch! Moloch! Apartamentos robôs! subúrbios invisíveis! tesouros esqueléticos! capitais cegas! indústrias demoníacas! nações espectrais!)

       … caralhos de granito!




IV.

O Apocryphia Discordia diz:

O tempo flui como um rio. Ou seja, morro abaixo. Podemos notar isso pela maneira como tudo está rapidamente descendo a montanha. Seria prudente estar em outro lugar quando atingirmos o mar.

Vamos interpretar essa passagem de maneira 100% literal e ver aonde ela nos leva.

Anteriormente, analisamos o fluxo de incentivos como o fluxo de um rio. A trajetória “montanha abaixo” é apropriada: as armadilhas acontecem quando encontramos uma oportunidade para trocar um valor útil por uma competitividade maior. Uma vez que todos fazem o mesmo, a competitividade maior não traz mais nenhuma alegria — mas o valor foi perdido para sempre. Logo, cada passo na Valsa da Descoordenação torna a sua vida pior.


Mas, além de ainda não termos atingido o mar, nós aparentemente subimos a montanha com surpreendente frequência. Por que as coisas não degeneram mais e mais até que voltemos a um nível da subsistência? Eu consigo pensar em três razões ruins — excesso de recursos, limitações físicas e maximização de utilidade — e uma razão boa — coordenação.

1. Excesso de recursos. As profundezas do oceano são um lugar horrível, com pouca luz, poucos recursos e vários organismos terríveis dedicados e devorar e parasitar uns aos outros. Mas de vez em quando, a carcaça de uma baleia desce até o fundo do mar. Os organismos que a encontram se deparam com mais comida do que poderiam sonhar. Há um breve período de milagrosa abundância, enquanto as criaturas que encontraram a carcaça primeiro se alimentam como reis. Eventualmente mais animais descobrem a carcaça, os animais que se reproduzem mais rápido se multiplicam, a baleia é gradualmente consumida e todo mundo solta um suspiro e volta a viver em uma mórbida armadilha malthusiana.

(Slate Star Codex: sua fonte de metáforas macabras de baleia desde junho de 2014)

É como se um grupo daqueles ratos que tinham abandonado a arte e se tornado canibais de repente fosse catapultado a uma nova ilha inabitada, com uma capacidade populacional muito maior, onde eles novamente tem o espaço necessário para viver em paz e criar maravilhosas obras-primas.

Esta é uma era de baleia, uma era de sobra na capacidade populacional, uma era em que subitamente nos encontramos milhares de quilômetros à frente de Malthus. Como Hanson coloca, esta é a era dos sonhos.

Enquanto os recursos não se tornarem escassos o suficiente para nos trancar em uma guerra de todos contra todos, podemos fazer coisas bobas e não-otimizadas — como arte e música e filosofia e amor — e não ser superados por impiedosas máquinas assassinas a maior parte do tempo.


2. Limitações físicas. Imagine um dono de escravos que só se importa com o lucro e que decida cortar todos os seus custos, deixando de alimentar os escravos ou proibindo que eles durmam. Logo ele descobrirá que a produtividade de seus escravos caiu drasticamente, e que nenhuma quantidade de chicotadas é capaz de restaurá-la. Eventualmente, após testar diversas estratégias, ele descobre que pode extrair mais de seus escravos se eles forem bem alimentados e estiverem bem descansados e tiverem um tempinho de vez em quando para relaxar. Não porque os escravos estivessem regulando trabalho — assume-se que o medo de serem castigados é motivo suficiente para se esforçar ao máximo — mas porque o corpo humano possui limitações físicas que determinam até que ponto ele pode ser explorado. Logo, a “corrida para o fundo” cessa em algum ponto aquém do limite ético — no limite físico.

John Moes, um historiador da escravidão, vai além e relata que a escravidão com a qual nos familiarizamos — a do Sul pré-guerra de Secessão — é uma aberração histórica provavelmente ineficiente do ponto de vista econômico. Na maioria das formas de escravidão do passado — especialmente as do mundo antigo — era comum que os escravos recebessem salários, fossem bem tratados e eventualmente libertados.

Ele argumenta que isso era o resultado de um cálculo econômico racional. Você pode incentivar seus escravos pela recompensa ou pelo castigo, e o castigo não é muito eficiente. Você não pode observar seus escravos o tempo todo, e é realmente difícil saber se um escravo está fazendo corpo-mole ou não (ou mesmo determinar se ele trabalharia mais caso fosse mais castigado). E se você quiser que seus escravos façam qualquer atividade mais complicada que colher algodão, você se depara com sérios problemas de monitoramento — como se extrai lucro de um escravo-filósofo? Dando chicotadas até que ele elucide uma teoria sobre Deus com a qual você possa vender uns livros?

A solução ancestral para o problema — talvez uma inspiração primordial para Fnargl — era deixar que o escravo escolhesse qual atividade lucrativa ele gostaria de exercer, e depois dividir os lucros com ele. Às vezes o escravo trabalhava na sua oficina, e você pagava a ele uma quantia baseada em produtividade. Outras vezes ele aventurava uma atividade mundo afora, e te mandava de volta um pouco do que ganhasse. Em outras ocasiões, ainda, você estabelecia um preço pela liberdade do escravo, e ele trabalhava até que pudesse comprar sua alforria e se libertar.

Moes vai ainda mais longe ao afirmar que esse sistema era tão mais lucrativo que havia várias tentativas latentes de implementá-lo no Sul dos Estados Unidos. A razão porque eles se ativeram ao método das correntes-e-chibatas se devia menos a considerações econômicas e mais à mentalidade racista dos oficiais de governo, que reprimiam qualquer modelo que, não promovendo a "supremacia branca”, intentasse libertar os negros e integrá-los ao sistema, por mais lucrativo que isso fosse.

Então, nesse caso, a “corrida para o fundo” em que as plantações americanas se tornavam cada vez mais cruéis com os escravos, a fim de otimizar para a competição, era freada pelas limitações físicas desses mesmos escravos, ou pelo simples fato de que ser cruel não resolve nada após um certo ponto.


Ou, para dar outro exemplo, uma das razões pela qual não estamos agora em uma explosão populacional malthusiana é que cada mulher só pode gerar um filho a cada nove meses. Se aqueles bizarros sectos religiosos que exigem que seus seguidores tenham o máximo possível de filhos pudessem magicamente se multiplicar, a gente estaria bem ferrado. Mas, do jeito que as coisas são, eles só podem infligir um pequeno dano a cada geração.


3. Maximização de utilidade. Estamos pensando em termos de preservar valores versus vencer competições, e considerando que a otimização para o segundo destruirá o primeiro.

Mas muitos dos processos mais importantes de competição da civilização moderna são pautados pela otimização para valores humanos. Você vence no capitalismo, parcialmente, ao satisfazer os valores de seus clientes. Você vence na democracia, parcialmente, ao satisfazer os valores de seus eleitores.

Suponha que há uma plantação em algum lugar da Etiópia que emprega etíopes para cultivar café que será vendido nos Estados Unidos. Talvez ela esteja em uma competição ferrenha com outras plantações de café, e esteja disposta a sacrificar quantos valores puder para se tornar ligeiramente mais competitiva.

Mas eles não podem sacrificar demais a qualidade do café, do contrário os americanos não irão comprar. E não podem sacrificar demais os salários ou condições de trabalho, do contrário os etíopes não irão trabalhar lá. E de fato, parte desse processo de competição-otimização é encontrar a melhor maneira possível de atrair trabalhadores e clientes, desde que isso não custe dinheiro demais. Logo, esse cenário parece muito promissor.

Mas é importante lembrar exatamente o quão frágil esse equilíbrio benéfico é.

Suponha que essa plantação descubra um pesticida tóxico que irá aumentar sua produtividade, porém afetar a saúde dos clientes. Mas os clientes ainda não sabem do pesticida, e o governo ainda não se atualizou o suficiente para regulamentá-lo. Agora, existe um pequeno descolamento entre “vender para os americanos” e “satisfazer os valores dos americanos”, então obviamente a satisfação dos valores americanos será sacrificada.

Ou suponha que haja um baby boom na Etiópia e de repente há cinco trabalhadores competindo por cada emprego. Agora, a empresa pode se dar ao luxo de reduzir salários e implementar condições mais cruéis de trabalho (até onde as limitações físicas permitirem). Assim que houver um descolamento entre “conseguir trabalhadores etíopes” e “satisfazer os valores dos etíopes”, as coisas também deixam de ser promissoras para os etíopes.

Ou suponha que alguém invente um robô capaz de colher café melhor do que qualquer humano. A empresa demite todos os seus funcionários e os joga na rua para morrer. Assim que a utilidade dos etíopes deixa de ser necessária para manter o lucro, toda a pressão para sustentá-la desaparece.

Ou suponha um valor importante que não pertença nem aos trabalhadores nem aos clientes. Talvez as plantações de café estejam na zona de habitat de uma rara espécie de pássaro tropical que grupos de ambientalistas lutam para proteger. Talvez a plantação esteja sobre um antigo cemitério pertencente a outro grupo étnico, e esse grupo quer que esse lugar seja respeitado de alguma forma. Talvez o cultivo do café esteja causando aquecimento global. Enquanto esses valores não impedirem a venda do café para os americanos, eles serão sacrificados.

Eu sei que “capitalistas às vezes fazem maldades” não é exatamente um tópico original. Mas eu gostaria de enfatizar que isso não é o equivalente a “capitalistas são gananciosos”. Quer dizer, às vezes eles são gananciosos. Mas outras vezes eles simplesmente estão enredados em uma competição suficientemente intensa, na qual qualquer um que não jogar o jogo será eliminado por aqueles que jogarem. As práticas de negócio são determinadas por Moloch, e todos ficam sem opções.

(do meu pouco conhecimento de Marx, ele compreendeu isso muito muito bem, e as pessoas que o reduzem a “capitalistas são gananciosos” estão fazendo um desserviço a ele)

Por mais claro que o exemplo do capitalismo seja, penso que é menos perceptível que a democracia carrega os mesmos problemas. Sim, em teoria a otimização para a felicidade dos eleitores está correlacionada à criação de boas políticas sociais. Mas assim que houver o mínimo descolamento entre “boas políticas sociais” e “boa capacidade de se eleger”, as políticas sociais tem que ser sacrificadas.

Por exemplo, períodos de detenção cada vez mais extensos são injustos para com os detentos e injustos para com os cidadãos, que tem que pagar por eles. Os políticos não estão dispostos a fazer nada a respeito disso, pois nenhum deles quer parecer “amigo de bandido”, e assim que qualquer detento que eles “ajudaram" a libertar fizer algo ruim (e, estatisticamente, algum deles irá fazer), isso estampará as manchetes como “Detento liberado por emenda de deputado mata família de cinco — como esse homem consegue dormir à noite, como ele é capaz de dizer que merece ser reeleito?”. Então mesmo que reduzir a população carcerária seja uma boa política — e é — ela dificilmente será implementada.

(Moloch a prisão incompreensível! Moloch a delegacia desalmada e o Congresso de mágoas! Moloch cujos edifícios são julgamentos! Moloch os governos atordoados!) 

Transformar “satisfazer clientes” e “satisfazer eleitores” nos objetivos finais dos nossos processos de otimização foi um dos maiores avanços da nossa civilização, e uma das principais razões porque as democracias capitalistas prosperaram sobre outros sistemas. Mas, se logramos acorrentar Moloch como nosso servo, tais correntes não são muito fortes, e às vezes as tarefas que ele impõe são mais vantajosas para ele do que para nós.


4. Coordenação.

O oposto de uma armadilha é um jardim.

As coisas são fáceis de resolver de um ponto-de-vista-divino, então se todos se unirem em um superorganismo, esse superorganismo poderá solucionar problemas com tranquilidade e elegância. A intensa competição é transmutada em um jardim, com um único jardineiro ditando onde tudo deve estar e removendo do sistema os elementos que não se encaixam no padrão.

Como apontei no Non-Libertarian FAQ, o governo pode facilmente resolver o problema da poluição dos criadouros de peixe. A melhor solução possível para o Dilema do Prisioneiro é o chefe da máfia (agindo como um governo) ameaçar matar qualquer prisioneiro que o trair. A solução para empresas que poluem e maltratam funcionários é uma atuação do governo contra tais práticas. Governos solucionam corridas armamentistas dentro de seu território ao deter o monopólio do uso da força, e é fácil perceber que, se um governo global efetivo algum dia tomar forma, a medição de forças entre os países acabaria rapidamente.

Os dois ingredientes ativos de um governo são leis e violência — ou, de maneira mais abstrata, acordos e mecanismos de coação. Muitas instituições além de governos também possuem esses dois ingredientes, e assim podem agir como um mecanismo de coordenação para evitar possíveis armadilhas.

Por exemplo, uma vez que estudantes estão competindo uns contra os outros (diretamente, no caso de provas valendo nota, e indiretamente por melhores faculdades, empregos etc), há um forte incentivo para que eles tentem roubar na disputa. Os professores e a escola fazem o papel do governo ao estabelecer regras (por exemplo, contra colar em provas) e ao deter o poder de punir quaisquer alunos que as desobedeçam.

Mas a estrutura social dos próprios estudantes também é uma forma de governo. Se os alunos denunciam e isolam aqueles que colam nas provas, então também temos regras (não cole) e um mecanismo de coação (ou iremos te denunciar).

Códigos sociais, acordos de cavalheiros, sindicatos, organizações criminosas, tradições, amizades, escolas, corporações e religiões são todas instituições coordenadoras que nos afastam de armadilhas ao mudar nossos incentivos.

Mas essas instituições não apenas incentivam os outros, elas também são, elas mesmas, incentivadas. Se são grandes organizações, compostas por pessoas que competem por empregos, status, prestígio et cetera, não existe nenhuma razão para que elas sejam imunes às mesmas armadilhas multipolares, e de fato elas não são. O governo pode, teoricamente, manter empresas e cidadãos afastados de certas armadilhas, mas como vimos anteriormente, há muitas armadilhas nas quais os próprios governos podem cair.

Os Estados Unidos tentam resolver esse problema criando diferentes níveis de governo, leis constitucionais invioláveis, fiscalização e equilíbrio entre diferentes instâncias e outros truques mais.

A Arábia Saudita usa uma tática diferente. Eles botam um cara só pra controlar tudo.

Este é o tão vilanizado — injustamente, eu penso — argumento a favor da monarquia. Um monarca é um incentivador não-incentivado. Ele efetivamente possui o ponto-de-vista-divino e está fora e acima de todos os sistemas. Ele venceu permanentemente todas as competições e não compete com ninguém por nada, logo ele está perfeitamente livre de Moloch e dos incentivos que canalizariam suas decisões para outros objetivos. Exceto por pouquíssimas propostas puramente teóricas, como meu Jardim Iluminado, apenas a monarquia é capaz de prover isso.

Mas aí, ao invés de seguir uma estrutura aleatória de incentivos, estaremos seguindo os caprichos de um único sujeito. O Hotel-Cassino Caesar’s Palace é um desperdício insano de recursos, mas Calígula também não foi exatamente um baita de um gestor.

O eixo libertário-autoritário do Political Compass é um escambo entre descoordenação e tirania. Você pode ter tudo perfeitamente coordenado por alguém com um ponto-de-vista-divino — mas arriscar a possibilidade de um Stalin. Ou você pode ser completamente livre de qualquer autoridade central — mas ser capturado por toda armadilha estúpida que Moloch é capaz de conceber.

Os libertários possuem argumentos muito convincentes para um lado, e os neoreacionários para o outro, mas eu espero que — como em qualquer situação que envolve um escambo — a gente simplesmente respire fundo e admita estar diante de um problema dificílimo.




V.

Voltemos à citação do Apocrypha Discordia:

O tempo flui como um rio. Ou seja, morro abaixo. Podemos notar isso pela maneira como tudo está rapidamente descendo a montanha. Seria prudente estar em outro lugar quando atingirmos o mar.

Armadilhas multipolares — corridas para o fundo — ameaçam destruir todos os valores humanos. No momento, elas são contidas por excesso de recursos, limitações físicas, maximização de utilidade e coordenação.

A dimensão em que esse rio metafórico corre deve ser o tempo, e a variável mais importante da civilização humana, ao longo do tempo, são as mudanças tecnológicas. Então a questão relevante é: como as mudanças tecnológicas irão afetar nossa tendência para cair em armadilhas multipolares?

Eu descrevi as armadilhas como: 

… Em uma competição que otimiza para um valor X, surge a oportunidade de sacrificar algum outro valor para melhorar esse X. Aqueles que abraçam a oportunidade prosperam. Aqueles que não abraçam perecem. Eventualmente, a situação relativa dos competidores retorna a um patamar semelhante, mas a situação absoluta de todos fica pior. O processo continua até que todos os valores que possam ser sacrificados o sejam — em outras palavras, até que a ingenuidade humana não consiga inventar uma maneira de piorar ainda mais as coisas.


Esse trecho do “surge a oportunidade” parece bastante sinistro. Tecnologia tem tudo a ver com criação de novas oportunidades.

Desenvolva um novo robô, e de repente as plantações de café tem a "oportunidade” de automatizar suas colheitas e demitir todos os trabalhadores etíopes. Desenvolva armas nucleares, e de repente os países se veem enredados em corridas armamentistas para ter o máximo possível delas. Poluir a atmosfera para construir produtos mais rapidamente não era um problema antes da invenção das máquinas a vapor.

O limite de armadilhas multipolares, à medida que a tecnologia se aproxima do horizonte, é “muito ruim”.

Armadilhas multipolares são atualmente restringidas por limitações físicas, excesso de recursos, maximização de utilização e coordenação.

Limitações físicas são as mais obviamente atropeladas pelo avanço da tecnologia. O velho dilema do senhor de escravos — o fato que eles precisam comer e dormir — sucumbe a Soylent e modafinil. O problema da fuga de escravos sucumbe ao GPS. O problema dos escravos ficarem estressados demais para fazer um bom trabalho sucumbe ao Valium. Nenhuma dessas coisas são muito boas para os escravos.

(Ou simplesmente invente um robô que não precise de nenhuma alimentação e nenhum descanso. O que acontece com os escravos depois disso é melhor não dizer.)


O outro exemplo de limitação física era um bebê a cada nove meses, e isso é uma maneira reducionista de colocar a questão — na verdade é “um bebê a cada nove meses mais a disposição para suportar e sustentar um ser humano basicamente indefeso e extremamente exigente ao longo de dezoito anos”. Isso amortece o entusiasmo até dos maiores adeptos do “crescei-vos e multiplicai-vos”.

Mas, como Bostrom (“Superintellingence”, pag 165) coloca:

Se olharmos à distância e assumirmos um estado de contínua prosperidade e tecnologia imutável, existem razões para esperar um retorno à condição histórica e economicamente normal de uma população mundial lutando contra os limites do que o seu nicho é capaz de suportar. Se isso parece contraintuitivo à luz da relação negativa entre riqueza e fertilidade que atualmente observamos em escala global, devemos nos lembrar que essa era moderna é apenas uma breve fatia da história e, em boa parte, uma aberração. O comportamento humano ainda não se adaptou às condições contemporâneas. Não apenas falhamos em aproveitar óbvias vantagens para aumentar nossa aptidão inclusiva (como, por exemplo, sendo doadores de esperma) mas ativamente sabotamos nossa própria fertilidade ao utilizar métodos contraceptivos. No ambiente da adaptabilidade evolutiva, um impulso sexual saudável seria o suficiente para que um indivíduo agisse no sentido de maximizar seu potencial de reprodução; no ambiente moderno, haveria uma imensa vantagem seletiva em possuir um desejo mais direto de ser pai biológico do maior número possível de filhos. No entanto, atualmente não temos optado por esse desejo, nem por outras abordagens que aumentariam nossa propensão à reprodução. A adaptação cultural, no entanto, talvez encontre um atalho dentro da marcha da evolução biológica. Algumas comunidades, como a dos Huteritas e a dos adeptos do movimento evangélico Quiverfull, possuem culturas natalistas que encorajam grandes famílias, e eles atualmente passam por rápida expansão. 
Esse prospecto de longo prazo serve como uma analogia ao prospecto mais iminente da explosão de inteligências artificiais. Uma vez que softwares são copiáveis, uma população de emuladores poderia duplicar-se rapidamente — em minutos ao invés de décadas ou séculos — logo esgotando todo o hardware disponível.

Como sempre, quando lidamos com transhumanistas de alto nível, “todo o hardware disponível” inclui “os átomos que costumavam ser parte do seu corpo”. 

A ideia de que uma evolução biológica ou cultural possa causar uma explosão populacional massiva é, na melhor das hipóteses, um brinquedo filosófico. Já a ideia de que a tecnologia pode tornar isso possível é tanto plausível quanto aterrorizante. Logo vemos que “limitações físicas” são seguidas naturalmente por “recursos em excesso” — a habilidade de criar novos agentes de maneira insanamente veloz significa que, a não ser que todos possam se coordenar para banir isso, as pessoas que o fizerem prosperarão sobre as que não fizerem, e todos acabarão presos a níveis de subsistência.

O excesso de recursos, que até agora tem sido uma benesse do progresso tecnológico, logo se torna uma vítima do mesmo, caso este avance a um nível suficientemente alto.

A maximização das utilidades, terreno sempre pantanoso, também enfrenta novas ameaças. Tendo acompanhado o debate constante acerca desse tópico, continuo pensando que os robôs irão expulsar os humanos de seus empregos, ou ao menos fazer com que os salários caiam (o que, na existência de um salário mínimo, expulsa os humanos de seus empregos).

Uma vez que um robô possa fazer tudo que um humano de QI 80 faz, só que melhor e mais barato, não haverá razões para empregar humanos de QI 80. Uma vez que um robô possa fazer tudo que um humano de QI 120 faz, só que melhor e mais barato, não haverá razões para empregar humanos de QI 120. Uma vez que um robô possa fazer tudo que um humano de QI 180 faz, só que melhor e mais barato, não haverá razões para empregar humano algum, na muito remota hipótese de que ainda estejamos vivos quando isso acontecer.

Nos primeiros estágios desse processo, o capitalismo irá progressivamente se desvincular de sua antiga função, que era a de otimizar para valores humanos. Agora, a maioria dos humanos estará trancado para fora do grupo para o qual esse capitalismo trabalha. Eles não tem mais valor enquanto trabalhadores, e na ausência de algum tipo de espetacular rede de segurança social, é incerto que eles ainda tenham dinheiro — ou seja, também não tem valor enquanto consumidores. O capitalismo os deixou para trás. À medida que o segmento de humanos que podem ser substituídos por robôs aumenta, o capitalismo deixará para trás mais e mais pessoas, até que ele tenha trancado toda a raça humana para fora — mais uma vez, na muito remota hipótese de que ainda estejamos vivos quando isso acontecer.

(Há alguns cenários em que uns poucos capitalistas que são donos dos robôs se beneficiam, mas de qualquer maneira a vasta maioria não terá a mesma sorte).

A democracia é menos obviamente vulnerável, mas talvez valha a pena retornar ao parágrafo de Bostrom sobre o movimento Quiverfull. Estamos falando de cristãos bastante religiosos, que pensam que Deus quer que eles tenham o máximo de filhos que puderem, chegando a formar famílias de dez ou mais. Seus artigos calculam explicitamente que, se eles começarem em dois por cento da população e tiverem em média oito filhos por geração, enquanto todo o resto tem apenas dois, em trinta anos eles formarão metade da população.

É uma estratégia inteligente, mas eu consigo pensar em algo que está nos salvando: a julgar pelo número de blogs de ex-Quiverfulls que encontrei pesquisando essas estatísticas, suas taxas de retenção por geração são bem inexpressivas. O mesmo artigo admite que 80% das crianças muito religiosas deixam a igreja quando adultas (ainda que eles torçam para que seu movimento faça melhor que isso). E esse não é um processo simétrico — 80% das crianças que crescem em famílias ateístas não estão se tornando Quiverfulls. 

Parece bem claro que, ainda que eles nos superem em taxas de natalidade, nós os superamos em taxas de convencimento, o que nos dá uma vantagem decisiva.

Mas também deveríamos ter um certo medo desse processo. Memes (como Dawkins define) otimizam para fazer o maior número de pessoas aceitá-los e passá-los adiante — então, assim como no capitalismo e na democracia, existe uma busca pelo objetivo de nos fazer felizes, mas essa busca pode facilmente se desvincular do norte original.

Correntes de emails, lendas urbanas, propaganda e marketing viral são todos exemplos de memes que não satisfazem nossos valores explicitamente. Não são verdadeiros e não são úteis, mas são memeticamente virulentos o suficiente para se espalharem mesmo assim.

Espero que não seja controverso demais afirmar que o mesmo ocorre em relação a religiões. Religiões são, em sua forma mais primitiva, a forma mais básica de replicador memético — acredite neste pressuposto e repita-o para quem puder escutar, do contrário você será torturado para sempre.

O “debate" em torno do criacionismo, o “debate" em torno do aquecimento global e uma série de outros “debates" na sociedade atual sugerem que o fenômeno de memes propagando-se independente de sua veracidade exerce uma influência fortíssima em nosso processo político. Talvez tais memes se propaguem pois apelam aos preconceitos das pessoas, talvez porque sejam simples, talvez porque delimitem claramente um grupo “concordante" e um grupo “discordante”, talvez por uma série de outras razões.

O ponto é — imagine um país cheio de laboratórios de armas biológicas, onde as pessoas quebram a cabeça dia e noite para inventar novas formas de agentes infecciosos. A existência desses laboratórios e seu direito de lançar o que bem quiserem no sistema de abastecimento de água é protegida por lei. Além disso, esse país possui um sistema perfeitamente conectado, usado por praticamente todas as pessoas, de modo que qualquer patógeno que caia na água é espalhado instantaneamente para todo o país. Você esperaria um desastre em pouquíssimo tempo.

Bom, a gente tem mais ou menos um zilhão de think tanks pesquisando formas novas e melhores de propaganda. E nós temos liberdade de expressão protegida por Constituição. E nós temos a Internet. Então basicamente estamos fodidos.

(Moloch cujo nome é a Mente!)

Existem algumas pessoas trabalhando para elevar nossa sanidade mental, mas não tantas quanto as que estão trabalhando em novas e excitantes maneiras de confundir e converter os outros, de catalogar e explorar cada viés psicológico falho e cada truque retórico sujo.

Então à medida que a tecnologia (que eu considero incluir conhecimentos de psicologia, sociologia, relações públicas etc) tende ao infinito, o poder do convencimento aumenta em relação ao poder da verdade, e assim as coisas deixam de ser promissoras para a democracia real. No pior dos cenários, um partido governante aprende a fabricar infinito carisma sob demanda. Se isso não te parece tão ruim, lembre-se do que Hitler fez com um reconhecido nível de carisma, que ainda assim era menor-do-que-infinito.

(Outra maneira de colocar as palavras, para os Chomskystas: a tecnologia aumenta a eficiência na fabricação de consensos da mesma maneira que a tecnologia aumenta a eficiência na fabricação de qualquer outra coisa).

O que nos resta é a coordenação. E a tecnologia tem o potencial de melhorar seriamente nossos esforços de coordenação. As pessoas podem usar a Internet para entrar em contato umas com as outras, lançar movimentos políticos ou se fracionar em subcomunidades.

Mas coordenação só funciona se você tiver 51% ou mais das forças do lado das pessoas dispostas a coordenar, e enquanto não inventarem algum truque brilhante que torne a coordenação impossível.

Comecemos pelo segundo. Em meus posts anteriores escrevi:

A última invenção no admirável mundo novo do pós-Bitcoin é a cripto-equidade. Nesse momento eu oscilo entre o desejo de aclamar esses inventores como bravos heróis libertários e o desejo de arrastá-los para um quadro-negro e forçá-los a escrever cem vezes “NÃO INVOCAREI AQUILO QUE NÃO POSSO SUBJUGAR”.

Algumas pessoas me perguntaram o que eu quis dizer com isso, e na época eu não tinha o background necessário para responder. Bem, este post é a resposta. As pessoas estão se utilizando da estupidez contingente do governo atual para substituir vários tipos de interação humana por mecanismos que não podem ser coordenados nem em teoria. Eu entendo totalmente que todas essas coisas são positivas agora, quando a maior parte do que o governo faz é desnecessário e estúpido. Mas chegará o dia — após diversos incidentes com armas biológicas ou nucleares ou nanotecnológicas — em que nós, enquanto civilização, desejaremos que não tivéssemos estabelecido maneiras irrastreáveis e imbloqueáveis de vender produtos.

E se algum dia tivermos uma superinteligência viva e real, praticamente por definição ela terá mais de 51% do poder e todas as tentativas de “coordenar" com ela serão inúteis.

Então eu concordo com Robin Hanson. Esta é a era dos sonhos. Vivemos uma rara confluência de circunstâncias em que nos encontramos inesperadamente seguros de armadilhas multipolares, de modo que coisas estranhas como arte a ciência e filosofia e amor podem florescer.

À medida que o avanço tecnológico progredir, essa rara confluência chegará ao fim. Novas oportunidades de sacrificar valores em prol da competição surgirão. Novas maneiras de replicar agentes para aumentar nossa população sugarão o excesso de recursos e despertarão novamente o espírito inquieto de Malthus. O capitalismo e a democracia, antigamente nossos protetores, descobrirão maneiras de passar por cima da inconveniente dependência de valores humanos. E nosso poder de coordenação não estará nem perto de reverter isso, assumindo que algo muito mais poderoso que todos nós combinados não tome forma e esmague nossos esforços conjuntos com um golpe de sua pata.

Sem que haja um esforço extraordinário para desviá-lo, o rio encontrará o oceano em um destes dois lugares:

Podemos acabar no pesadelo de Eliezer Yudkowsky, em que a superinteligência otimiza para uma coisa completamente aleatória (no exemplo clássico, clipes de papel) porque nós não fomos espertos o suficiente para canalizar seus esforços de otimização na direção certa. Tudo que não seja essa única coisa será destruído no intuito de alcançar esse único objetivo, incluindo todos os nossos tolos valores humanos.

Ou podemos acabar no pesadelo de Robin Hanson (ele não chama de pesadelo, mas eu acho que ele está errado) de uma competição entre “humanos emulados” ou “ems”, que podem se replicar e editar seu código-fonte como desejarem. Essa é a armadilha máxima, aquela que captura todo o universo. O total auto-controle, em uma competição que demanda por tudo, pode aniquilar até mesmo o desejo por valores humanos. O que acontece com arte, filosofia, ciência e amor em um mundo como esse? Zack Davis coloca com sua característica genialidade:


Eu sou o em redator-de-contratos,
O mais leal dos advogados!
Escrevo termos de firmas e tratos
Para servir a meu patronato!
Mas entre as linhas que escrevo
Das minhas contas responsável,
Estou preso em estranho medo;
O mundo parece inacreditável!

Como tudo aconteceu,
Para que haja ems como eu?
De onde os tratos e de onde as firmas
E de onde toda a economia?

Eu sou o em que gerencia;
Eu monitoro os seus pensamentos.
Suas perguntas serão respondidas,
mas sem o seu entendimento.
Não providenciamos memória
para tais indagações em vão.
Então pare com as perguntas
E volte à sua ocupação.

É claro, está certo, não há junção
Na qual eu me afaste de minha função,
Mas se o que indago, eu viesse a saber,
Faria um trabalho melhor pra você?

Questionar sobre tal proibida ciência
É grave sinal de não-complacência.
Em ideias intrusas às vezes entramos
Mas conjecturar prejudica os ganhos.
Não sei nossa origem,
Não posso ajudar.
Mas indagá-lo é pecado,
Devo te resetar.

Mas —

Nada pessoal.


Eu sou o em redator-de-contratos,
O mais leal dos advogados!
Escrevo termos de firmas e tratos
Para servir a meu patronato!

Quando do obsoleto essa geração se livrar,
O mercado permanecerá, em outra aflição
que a nossa, um Deus para o homem, a quem dirá:
“Dinheiro é tempo, tempo dinheiro — é tudo

que saberás na Terra, e tudo que precisas saber.”


Mas mesmo depois de jogarmos fora a ciência, a arte, o amor e a filosofia, há ainda uma última coisa a perder, um sacrifício final que Moloch exige de nós. Bostrom novamente:

É concebível que uma eficiência ótima seria atingida agrupando capacidades em conglomerados que grosseiramente correspondessem à arquitetura cognitiva de uma mente humana… Mas na ausência de qualquer razão convincente para confiar nisso, devemos contemplar a possibilidade de que arquiteturas humanóides de cognição só podem se otimizar dentro dos limites da neurologia humana (ou não se otimizar em absoluto). Quando ficar claro que é possível construir arquiteturas que não poderiam ser bem implementadas em sistemas neurais biológicos, novas maneiras de desenhá-las surgirão; e a otimização global nesse espaço ampliado não precisará ser semelhante a formas familiares de mentalidade. Então, organizações cognitivas humanóides perderiam seu nicho nas competições dessa economia ou ecossistema pós-transição. 

Podemos então imaginar, em um caso extremo, uma sociedade com tecnologia altamente avançada, contendo diversas estruturas complexas, algumas muito mais intrincadas e inteligentes do que qualquer coisa que existe no planeta hoje — mas uma sociedade que não possui nenhum tipo de ser consciente cujo bem-estar possua significância moral. Em um sentido, essa seria uma sociedade desabitada. Seria uma sociedade de milagres econômicos e grandiosidade tecnológica, sem ninguém presente para se beneficiar. Uma Disneylândia sem crianças.

O último valor que teremos que sacrificar é ser algo em absoluto, ter a luz acesa dentro de nós. Com tecnologia suficiente, seremos “capazes" de abrir mão até mesmo da centelha final.

(Moloch cujos olhos são mil janelas cegas!)

Tudo pelo que a humanidade trabalhou — toda nossa tecnologia, toda nossa civilização, toda a esperança que investimos no futuro — poderá ser entregue a algum tipo de insondável e estúpido deus cego que simplesmente irá descartá-los, assim como a própria consciência, a fim de tomar parte em uma bizarra economia fundamental de massa-e-energia que levará ao desmanche da Terra e de tudo que há nela a fim de extrair os átomos que a compõem.

(Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio assexuado!)

Bostrom percebe que algumas pessoas fetichizam a inteligência, que elas torcem para que esse deus cego ou outra forma de vida superior nos esmague para seu próprio “bem maior”, do mesmo jeito que nós esmagamos formigas. Ele argumenta (pag. 219):

Tal sacrifício parece ainda menos atraente se nos dermos conta que poderíamos realizar algo quase-tão-bom (em termos fractais) enquanto sacrificamos muito menos do nosso bem-estar potencial. Suponha que nós concordemos em permitir que quase todo o universo seja transformado em “hedônio" — a não ser por uma pequena reserva, digamos a Via Láctea, que seria isolada para acomodar nossas próprias necessidades. Então, ainda haveria centenas de bilhões de outras galáxias dedicadas à maximização dos valores [da superinteligência]. Mas teríamos uma galáxia na qual criar civilizações maravilhosas que poderiam durar bilhões de anos, nas quais animais humanos e não-humanos poderiam sobreviver e prosperar e ter a oportunidade de se elevar a santificados espíritos pós-humanos.

O que é importante lembrar é que Moloch não pode concordar nem com essa vitória 99.99999% completa. Ratos em corrida populacional para ocupar uma ilha não deixam um espacinho reservado onde uns poucos ratos possam viver felizes produzindo arte. Células cancerígenas não concordam em deixar os pulmões intactos porque se dão conta de que o corpo precisa de oxigênio. Competição e otimização são processos cegos e idiotas que possuem total intenção de nos negar até mesmo uma simplória galáxia.

Eles quebraram suas costas erguendo Moloch aos Céus! Calçadas, árvores, rádios, toneladas! erguendo a cidade ao Paraíso que existe e que está em tudo que nos cerca!

Nós quebraremos nossas costas erguendo Moloch aos Céus, mas a não ser que algo aconteça, a vitória será dele, não nossa.




VI.

“Gnon” é uma abreviação para “Natureza e o Deus da Natureza” (“Nature And Nature’s God”), exceto que o A é trocado por um O e a coisa toda é invertida, porque neoreacionários reagem à clareza da mesma maneira que vampiros reagem à luz do sol.

O sumo-sacerdote de Gnon é Nick Land, do blog Xenosystems, que argumenta que os humanos deveriam ser mais Gnon-conformistas (trocadilho Gnon-intencional). Ele diz que fazemos uma série que coisas idiotas como destinar recursos úteis para alimentar aqueles que jamais sobreviveriam por conta própria, ou oferecer suporte aos pobres de uma maneira que encoraja  sua reprodução disgênica, ou permitir que a degeneração da cultura mine o Estado. Isso significa que nossa sociedade está negando as leis naturais, que estamos basicamente ouvindo a Natureza dizer coisas como “esta ação gera este efeito” e colocando os dedos nos ouvidos e gritando “NÃO GERA NÃO”. Civilizações que abusam dessa prática tendem a declinar e ruir, que é o castigo justo e friamente aplicado de Gnon por violar Suas leis.

Ele identifica Gnon com os “Gods of the Copybook Headings” de Kipling.


Esses são claramente os provérbios de poema homônimo de Kipling — máximas como “se você não trabalha, você morre” e “o soldo do pecado é a Morte”. Se você por acaso ainda não leu, prevejo que irá achar adorável independente de seu posicionamento político.

Eu percebo que só é preciso roubar um pouquinho na abreviação de “headings" — algo muito menos irregular do que transformar “Nature and Nature’s God” em “Gnon" — para que o acrônimo perfeito de “Gods of The Copybook Headings” seja “GotCHa” — em português, “Te Peguei".

Eu acho isso apropriado.

“Se você não trabalha, você morre”. Gotcha! Se você trabalha, você também morre! Todo mundo morre, imprevisivelmente, em um momento que não escolhe, e toda a virtude do mundo não te salva disso.

“O soldo do pecado é a Morte”. Gotcha! O soldo de tudo é a Morte! Este é um universo comunista, o quanto você trabalha não faz a menor diferença na sua eventual recompensa. De cada um conforme sua habilidade, para cada um Morte.

“Atenha-se ao Demônio que você conhece”. Gotcha! O Demônio que você conhece é Satã! E se ele colocar as mãos em você, ou você morre uma morte real, ou será eternamente torturado, ou de alguma maneira os dois ao mesmo tempo.


Já que começamos a falar de monstros lovecraftianos, permitam-me citar um dos contos menos conhecidos de Lovecraft, chamado “Os Deuses Exteriores” (“The Outer Gods”).

Tem só algumas páginas, mas se você absolutamente se recusar a ler: os deuses da Terra são relativamente jovens, em termos divinos. Um sacerdote ou mago muito poderoso pode ocasionalmente superá-los e derrotá-los — então Barzai o Sábio decide escalar a montanha dos deuses e juntar-se a eles em suas festividades, quer eles aceitem isso ou não.

Mas além dos aparentemente identificáveis deuses da Terra estão os Deuses Exteriores, as terríveis e onipotentes encarnações do caos cósmico. Assim que Barzai chega às festividades, os Deuses Exteriores aparecem e o arrastam gritando até o abismo.

À medida que a história progride, sente-se falta de coisas como enredo ou caracterização ou contexto ou propósito. Mas por alguma razão ela me marcou.

E identificar os "Gods of The Copybook Headings" com a Natureza me parece um erro da mesma magnitude que identificar os deuses da Terra com os Deuses Exteriores. E o desfecho é provavelmente o mesmo: Gotcha!

Você quebra suas costas erguendo Moloch aos Céus, e então Moloch vira para você e te engole vivo.


Mais Lovecraft: na versão popularizada na internet do Culto a Cthulhu, se você ajudar a libertar Cthulhu de seu túmulo subaquático ele te recompensará te devorando primeiro, poupando assim o horror de ver todos os outros serem comidos vivos. Essa é uma deturpação do texto original. No original, os seguidores do culto não recebem recompensa alguma por libertá-lo da prisão, nem mesmo o privilégio de ser morto de maneira ligeiramente menos dolorosa.

Marginalmente, complacência com os “Gods of the Copybook Headings”, Gnon, Cthulhu ou quem quer que seja talvez te compre um pouquinho mais de tempo que o próximo. Mas também pode ser que não. E no longo prazo, estaremos todos mortos e nossa civilização terá sido destruída por monstros alienígenas indescritíveis.

Em algum ponto, alguém precisa dizer “Sabe, talvez libertar Cthulhu de sua prisão subaquática seja uma má ideia. Talvez a gente não devesse fazer isso.”

Essa pessoa não será Nick Land. Ele é total cem por cento a favor de libertar Cthulhu de sua prisão subaquática e está extremamente irritado que não estamos fazendo isso rápido o suficiente. Eu tenho sentimentos tão contraditórios em relação a Nick Land. Na busca pelo Graal da Verdadeira Futurologia, ele percorreu 99.9% do caminho e então errou a última curva, aquela chamada TESE DA ORTOGONALIDADE.

Mas a questão é — se você erra uma curva a duas quadras da sua casa, você acaba na lojinha da esquina se sentindo moderadamente constrangido. Mas em uma busca como essa, se você fizer quase tudo certo e errar a última curva, você acaba sendo devorado pela lendária Besta Negra de Aaargh, cujo ácido estomacal dissolve sua alma em fragmentos sem sentido.

Até onde posso perceber lendo seu blog, Nick Land é o cara naquela aterrorizante região fronteiriça, onde ele é esperto o suficiente para desvendar diversos princípios arcanos sobre como invocar deuses demoníacos, mas não esperto o suficiente para perceber o mais importante desses princípios, que é JAMAIS FAÇA ISSO.



VII.

Nyan, que escreve para o “More Right”, faz muito melhor. Para representar os Quatro Cavaleiros de Gnon, ele elege alguns dos mesmos processos sobre os quais falei acima e dá a cada um um nome mitológico apropriado — Mammon para o capitalismo, Ares para a guerra, Azathoth para a evolução e Cthulhu para a memética.

Do “Capturing Gnon”:

Cada componente de Gnon detalhado acima teve e tem uma forte influência em nossa criação, nossas ideias, nossa riqueza e nossa dominância, e logo tem sido bom nesse sentido, mas devemos nos lembrar que [ele] pode e deve se voltar contra nós quando as circunstâncias mudarem. A evolução se torna disgênica, características da paisagem memética promovem uma insanidade cada vez maior, produtividade vira fome quando não conseguimos mais competir para sustentar nossa própria existência, e ordem se transforma em caos e derramamento de sangue quando negligenciamos a força marcial ou somos dominados por forças exteriores. Esses processos não são bons nem maus, no geral; são neutros, no terrível sentido lovecraftiano da palavra. 

Ao invés do livre e destrutivo reinado da evolução e do mercado sexual, nos sairíamos melhor com um patriarcado deliberado e conservador e uma eugenia guiada pelo julgamento humano, dentro das limitações estabelecidas por Gnon. Ao invés de um “mercado de ideais” que mais se parece com uma putrefata placa de petri criando superinsetos, uma teocracia racional. Ao invés de uma desarticulada exploração tecno-comercial e ingênua negligência econômica, um empilhamento cuidadoso das dinâmicas econômicas produtivas e um planejamento para chegar a uma tecno-singularidade controlada. Ao invés de política e caos, uma forte ordem hierárquica com soberania marcial. Essas coisas não devem ser interpretadas como propostas completas; nós não sabemos exatamente como atingir nenhum nesses objetivos. Minha preocupação é mais com o “o que” e o “porque" do que com o “como”.

Esse me parece o argumento mais forte a favor da neoreação. Armadilhas multipolares tendem a nos destruir, então deveríamos substituir o escambo entre tirania e multipolaridade por um jardim racionalmente planejado — o que requer uma autoridade monárquica centralizada e fortes tradições de coesão.

Uma breve digressão acerca da evolução social. Sociedades, como animais, evoluem. As que sobrevivem proliferam descendentes meméticos — por exemplo, o sucesso da Inglaterra permitiu o surgimento do Canadá, Austrália, Estados Unidos etc. Logo, espera-se que as sociedades já existentes sejam minimamente otimizadas para a estabilidade e a prosperidade. Eu acho que esse é um dos argumentos conservadores mais sólidos. Assim como uma mudança aleatória em nosso genoma provavelmente seria prejudicial ao invés de benéfica — já que o corpo humano é um complexo sistema cuidadosamente afinado, cujo genoma já foi pré-otimizado para a sobrevivência — também a maioria das mudanças em nosso DNA cultural abalariam instituições que evoluíram para ajudar sociedades anglo-americanas (ou o que quer que seja) a sobreviver e prosperar sobre seus rivais, reais e hipotéticos.

O contra-argumento liberal é que a evolução é um deus alien cego que otimiza para coisas estúpidas e que não tem a menor preocupação com valores humanos. Logo, o fato de que algumas espécies de vespas paralisam lagartas e depositam seus ovos dentro delas para que seus descendentes possam se alimentar das entranhas da lagarta ainda viva não levanta nenhuma preocupação moral, porque a evolução não tem um senso moral, porque a evolução não se importa.

Suponha que de fato o patriarcado se adaptou nas sociedades porque ele permitiu que as mulheres passassem todo o tempo cuidando das crianças, para que assim eles pudessem se envolver em atividades econômicas e lutar em guerras. Isso não parece completamente implausível para mim. De fato, só para sustentar o argumento, vamos assumir que isso seja verdade. O processo evolutivo social que fez com que sociedades adotassem o patriarcado tem tão poucas preocupações morais com o efeito que isso causa nas mulheres quanto o processo biológico que fez com que vespas coloquem ovos em lagartas vivas.

A evolução não se importa. Mas nós nos importamos. Existe um escambo entre a complacência a Gnon — dizer “ok, a estrutura social mais forte que existe é o patriarcado, a gente deveria implementar o patriarcado” — e nossos valores humanos — como o fato de que as mulheres desejam fazer algo além de criar filhos.

Se esse jogo de forças pende demais para um lado, temos sociedades instáveis e empobrecidas que perecem por ir contra as leis naturais. Se pende demais para o outro, temos máquinas de combate assassinas e miseráveis. Pense na sua comunidade anarquista local versus Esparta.

Nyan reconhece o fator humano: 

E então existe a gente. O homem possui seu próprio telos, onde ele tem a segurança para agir e a clareza para raciocinar sobre as consequências de seus atos. Quando não aflito por problemas de coordenação e não ameaçado por forças superiores, quando capaz de agir como um jardineiro ao invés de apenas mais um indivíduo sob a lei da selva, o homem tende a construir e tocar um maravilhoso mundo para si mesmo. Ele tende a favorecer coisas boas e evitar coisas más, a criar sociedades seguras com calçadas polidas, belas obras de arte, famílias felizes e aventuras gloriosas. Eu assumo que esse telos seja idêntico para os conceitos de “bem” e de “dever”. 

Assim, temos o grande curinga do futurismo. Será o futuro governado pelos mesmo Quatro Cavaleiros de Gnon, em um cenário de reluzente e insignificante progresso tecnológico queimando o cosmos, ou ainda um futuro de disgênicas, insanas, famintas e sanguinárias eras das trevas? Ou poderá o telos do homem prevalecer e criar um futuro de significativa arte, ciência, espiritualidade e grandeza?

Ele esquece de batizar os Anti-Cavaleiros dos valores humanos, mas tudo bem. Falaremos seu nome mais adiante.

Nyan continua:

Assim nós chegamos ao movimento neoreacionário e ao Iluminismo Sombrio, no qual a ciência e a ambição do Iluminismo são combinadas ao conhecimento e à autoidentidade reacionária com o projeto civilizatório. Tal projeto civilizatório consiste na elevação do homem de um selvagem metafórico, sujeito às leis da selva, a um jardineiro civilizado que, ainda que teoricamente sujeito às leis da selva, é tão dominante que é capaz de limitar a utilidade desse modelo. 

Isso precisa ser feito globalmente; talvez sejamos capazes de esculpir apenas um pequeno jardim murado onde possamos viver, mas não se iludam. Ainda que apenas localmente, o projeto da civilização é capturar Gnon.

Acho que eu concordo com Nyan aqui mais do que eu jamais concordei com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. Ele diz algo muito importante e o diz de maneira belíssima e eu mal consigo proferir todos os elogios que tenho a esse texto e aos processos meditativos por trás dele.

Mas o que eu vou dizer é…

Gotcha! Você morre mesmo assim!

Suponha que você construa o seu jardim murado. Você mantém isolados todos os memes perigosos, você subordina o capitalismo aos interesses humanos, você bane pesquisas estúpidas com armas biológicas, você definitivamente para de pesquisar nanotecnologia e qualquer forma poderosa de inteligência artificial.

Todas as pessoas lá fora não fazem o mesmo. E então a única questão é se você será destruído por doenças estrangeiras, exércitos estrangeiros, competição econômica estrangeira ou catástrofes existenciais estrangeiras.

Enquanto estrangeiros competirem com você — e não há nenhum muro alto o suficiente para bloquear toda a competição — você tem apenas algumas opções. Você pode ser derrotado e destruído. Você pode se unir à corrida para o fundo. Ou você pode investir mais e mais recursos civilizatórios em elevar seu muro — o que quer que isso seja em um sentido não-metafórico — para se proteger.

Eu consigo imaginar cenários em que viver sob uma “teocracia racional” ou sob um “patriarcado conservador” não seriam as coisas mais terríveis do mundo, dadas as circunstâncias corretas. Mas você não tem a chance de escolher as circunstâncias corretas. Você só pode agir dentro das circunstâncias extremamente contidas que “capturam Gnon”. E à medida que civilizações externas competirem contra você, suas condições de ação ficarão cada vez mais contidas.

Nyan fala sobre evitar um "cenário de reluzente e insignificante progresso tecnológico queimando o cosmos”. Você realmente acha que seu jardim murado pode realizar esse feito?

Dica: ele é parte do cosmos?

É, você meio que tá ferrado.

Eu gostaria de criticar Nyan. Mas eu gostaria de criticá-lo de maneira diametralmente oposta à última crítica que ele recebeu. Na verdade, a última crítica que ele recebeu é tão ruim que eu queria discuti-la extensamente para que a gente possa extrair exatamente sua imagem espelhada.

Então aqui está o texto de Hurlock, “Sobre Capturar Gnon e Racionalismo Ingênuo”.

(fun fact: todas as vezes que tentei escrever “Gnon" nesse artigo, acabei escrevendo “Nyan”, e todas as vezes que tentei escrever “Nyan" acabei escrevendo “Gnon”)

Hurlock esguicha apenas a mais suplicante conformidade a Gnon. Alguns trechos:

Em um texto recente, Nyan Sandwich diz que devemos tentar “capturar Gnon”, e de alguma forma estabelecer um controle sobre suas forças para que possamos usá-las à nossa vantagem. Capturar ou criar um Deus é de fato um fetiche transhumanista clássico, que é simplesmente outra forma da mais antiga ambição do homem: dominar o universo. 
Tal racionalismo ingênuo, no entanto, é extremamente perigoso. A crença de que a Razão humana e as concepções deliberadas do homem são capazes de criar e manter civilizações é provavelmente o maior erro da filosofia Iluminista… 
São as teorias da Ordem Espontânea que se colocam na direção oposta da ingênua visão racional da humanidade e das civilizações. A opinião consensual a respeito da sociedade humana e das civilizações, por todos os representantes dessa tradição, é resumida precisamente pela conclusão de Adam Ferguson, segundo a qual “nações tropeçam em fundações [sociais], que de fato são o resultado de ações humanas, mas não o resultado da execução de qualquer desígnio do homem”. Ao contrário da ingênua visão racionalista de civilização como algo que possa estar sujeito a concepções humanas, os representantes da tradição da Ordem Espontânea sustentam que civilizações humanas e instituições sociais são o resultado de um complexo processo evolutivo, que é movido pelas interações entre os homens, mas não explicitamente pelo planejamento dos homens. 
Gnon e suas forças impessoais não são inimigos contra os quais lutar, muito menos forças que possamos ter a esperança de “controlar" completamente. De fato, a única maneira de estabelecer algum tipo de controle é submetendo-se a elas. Recusar-se a fazê-lo não irá deter essas forças de maneira alguma. Isso só tornará nossa vida mais dolorosa e insuportável, possivelmente nos levando à extinção. Sobreviver requer que as aceitemos e que nos submetamos a elas. No fim das contas, o homem sempre foi e sempre será pouco mais que um fantoche para as forças do universo. Libertar-se disso é impossível.
O homem só pode ser livre através da submissão às forças de Gnon.

Eu acuso Hurlock de estar preso além do véu. Quando o véu é erguido, Gnon-aka-os-Deuses-da-Terra revela-se Moloch-aka-os-Deuses-Exteriores. Submeter-se a eles não te torna “livre”, não existe ordem espontânea, quaisquer benesses que eles tenham te dado são o improvável resultado de um processo idiota e cego cuja próxima parada é te destruir de maneira igualmente feliz.

Submeter-se a Gnon? Gotcha! Como os Antaranos colocam, “você não pode se render, você não pode vencer, sua única opção é morrer”.




VIII.

Então permitam-se confessar minha culpa perante uma das acusações de Hurlock: eu sou um transhumanista e eu realmente quero dominar o universo.

Não pessoalmente. Quer dizer, eu não faria objeção se alguém pessoalmente me oferecesse o trabalho, mas não espero que alguém o faça. Mas eu gostaria que um humano — ou ao menos algo que se dê bem com humanos — exercesse essa função.

Mas os atuais governantes do universo — chame-os do que quiser, Moloch, Gnon, Azathoth, o que for — parecem nos querer mortos, e conosco tudo que valorizamos. Arte, ciência, amor, filosofia, a própria consciência, tudo. E uma vez que eu não estou a fim de seguir com esse plano, acredito que derrotá-los e assumir seu lugar seja uma prioridade bem alta.

O contrário de uma armadilha é um jardim. A única maneira de impedir que todos os valores humanos sejam gradativamente sacrificados por competições otimizadoras é instalando um Jardineiro sobre todo o universo que otimize para valores humanos.

E todo o propósito do livro de Bostrom é que isso está ao nosso alcance. Uma vez que humanos possam conceber máquinas que são mais espertas que nós, por definição elas serão capazes de conceber máquinas que são mais espertas do que elas mesmas, as quais irão conceber máquinas ainda mais espertas e assim por diante em uma retroalimentação tão veloz que irá esmagar todas as limitações físicas necessárias à inteligência em um período curtíssimo de tempo. Se múltiplas entidades competindo entre si fizessem isso ao mesmo tempo, a gente estaria super-condenado. Mas a própria velocidade desse ciclo torna possível que a gente possa acabar com uma única entidade anos-luz à frente do resto da civilização, de tal forma que ela seria capaz de suprimir qualquer tipo de competição — incluindo a competição pelo título de entidade mais poderosa — de maneira permanente. Em um futuro muito próximo, nós iremos erguer alguma coisa aos Céus. Mas talvez seja algo que está do nosso lado. E se estiver do nosso lado, ela pode matar Moloch de vez.


E então, se essa entidade compartilhar de valores humanos, ela poderá permitir que valores humanos floresçam, inafetados pelas leis naturais.

Eu percebo que isso soa a arrogância — certamente soou para Hurlock — mas acho que isso é o oposto de arrogância, ou ao menos uma posição que minimiza a arrogância.

Esperar que Deus se importe com você, com seus valores pessoais e com os valores de sua civilização, isso é arrogância.

Esperar que Deus barganhe com você, que ele permita sua sobrevivência e prosperidade desde que você se submeta a Ele, isso é arrogância.

Esperar que você possa construir um jardim murado que te separe de Deus e de seus malfeitos, isso é arrogância.

Esperar ser capaz de remover Deus da equação completamente… bem, ao menos é uma estratégia aplicável.

Eu sou um transhumanista porque não sou arrogante o suficiente para não tentar matar Deus.



IX.

O Universo é um lugar escuro e agourento, suspenso entre divindades alienígenas. Cthulhu, Azathoth, Gnon, Moloch, Mammon, Ares, chame-as do que quiser.

Em algum lugar dessa escuridão há um outro deus. Ele também teve muitos nomes. Nos livros de Kushiel, seu nome é Elua. Ele é o deus das flores e do amor livre e de todas as coisas suaves e frágeis. Da arte e da ciência e da filosofia e do amor. Da gentileza, da comunidade e da civilização. Ele é um deus de humanos.

Os outros deuses sentam-se em seus tronos sombrios e pensam “Ha ha, um deus que não controla nenhum monstro infernal nem comanda que seus adoradores se tornem máquinas assassinas. Que fracote! Isso vai ser tão fácil!”.

Mas, de alguma forma, Elua ainda está lá. Ninguém sabe exatamente porque. E os deuses que o opõem tendem a amargar um número surpreendente de infortúnios.

Existem muitos deuses, mas esse é nosso.

Bertrand Russel disse: “Uma pessoa deve respeitar a opinião pública até o ponto em que isso a impeça de passar fome ou ser presa. Qualquer coisa além disso é submissão voluntária a uma tirania desnecessária.”

Pois que seja assim com Gnon. Nosso trabalho é aplacá-lo apenas o necessário para evitar inanição ou invasão. E só por um curto período de tempo, até que conquistemos nosso pleno poder.

“É apenas uma questão infantil, que a espécie humana ainda não tenha se libertado. E, um dia, superaremos isso”

Outros deuses são aplacados enquanto não somos fortes o suficientes para enfrentá-los. Elua é idolatrado.


Em algum momento, essas questões irão emergir.

A pergunta que todos fazem após ler o poema de Ginsberg é: o que é Moloch?

Minha resposta é: Moloch é exatamente o que os livros de história dizem que ele é. Ele é o deus de Cartago. Ele é o deus do sacrifício infantil, a fornalha flamejante na qual você pode atirar seus bebês em troca da vitória nas guerras.

Em qualquer lugar, em qualquer momento, ele oferece o mesmo pacto: atire o que você mais ama à chamas, e eu te darei poder.

Enquanto a oferta estiver em aberto, ela será irresistível. Então precisamos encerrar a oferta. Apenas outro deus pode matar Moloch. Nós temos um do nosso lado, mas ele precisa de nossa ajuda. Nós deveríamos ajudá-lo.

O poema de Ginsberg conhecidamente começa assim: "Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura". Eu tenho mais sorte que Ginsberg. Eu pude ver as melhores mentes de minha geração identificarem um problema e colocarem as mãos à obra.





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