Monday, December 4, 2017

A Deusa de Todo o Resto

Publicado em 17 de agosto de 2015 por SCOTT ALEXANDER

Tradução: Cauê Laratta

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Dizem que apenas o Bem pode criar, ao passo que o Mal é estéril. Pense em Tolkien, onde Morgoth não é capaz de criar as coisas ele mesmo, então perverte Elfos e Orcs para seus exércitos. Mas eu acho que isso é entender tudo ao contrário; é o Bem que se mutaciona e se contorce, e é o Mal que está infestado de fecundidade.

Imagine dois princípios, aqui em poética personificação. O primeiro é a Deusa do Câncer, o segundo é a Deusa de Todo o Resto. Se representações visuais ajudarem, você pode conceber a primeira com as garras de um caranguejo, e a segunda com um vestido feito das penas de um pavão.

A Deusa do Câncer estendeu uma garra sobre poças e lamaçais. Ela falou basicamente o que sempre fala, “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”. Então tudo brotou em vida: monstros de miniatura, engajados em uma batalha de todos contra todos, num ardor por aliviar seus insaciáveis desejos. E os pântanos tornaram-se orgias de fome e medo e ressoaram com os gritos de um trilhão de amebas.

Então a Deusa de Todo o Resto abriu caminho pelo pântano, até que a lama quase apagasse suas cintilantes cores de arco-íris. Ela pousou sobre uma pedra e cantou-lhes o sonho de outra existência. Mostrou a beleza das flores, mostrou a majestade do carvalho. O rugido do vento nas asas do pássaro e a destreza e a força do tigre. Mostrou a alegria dos golfinhos nas ondas, quando os borrifos de água formam arco-íris ao seu redor, e todos assistiram ela cantar, e todos suspiraram de anseio.

Mas eles disseram: “Oh, o que vocês nos mostra é terrivelmente adorável. Mas nós somos as filhas e filhos da Deusa do Câncer, e inteiramente suas criaturas. Os únicos objetivos em nós são MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE. E ainda que nossos corações te desejem, não somos seus para dominar, e suas palavras não tem poder para nos mover. Gostaríamos que não fosse assim, mas assim é, e suas palavras não tem poder para nos mover.

A Deusa de Todo o Resto sorriu e falou em sua voz melódica, dizendo: “Eu mal posso culpá-los por serem do jeito que foram feitos, quando seu Criador tão cuidadosamente os germinou. Mas eu sou a Deusa de Todo o Resto e meus poderes são tortuosos e sutis. Então não peço que desviem de seu foco monomaníaco em reproduzir e conquistar. Mas e se eu mostrar uma maneira em que minhas palavras estão alinhadas com as do seu Criador em espírito? Pois eu vos digo que mesmo a própria multiplicação, quando perseguida com devoção, colocar-se-á a meus serviços".

E assim que ela falou, o foi: e as criaturas unicelulares foram libertas de suas guerras. Elas uniram as mãos em amizade, esta tornando-se um olho e aquela tornando-se um neurônio. Juntas, elevaram-se e voaram além do pântano e do esterco que as havia parido, planando até novas ilhas verdes e embalsamadas e perfeitamente maduras para a ocupação. E lá elas consumiram e multiplicaram muito além dos números daqueles que permaneceram no pantanal. Dessa maneira, o juramento da Deusa de Todo o Resto não foi quebrado.

A Deusa do Câncer irrompeu do fogo, nada contente. As coisas que ela havia cultivado na lama e condenado a matar e competir haviam se tornado complacentes em co-operação, uma palavra que para ela era anátema. Ela estendeu a mão esquerda e estalou sua pinça cruel, e falou o que sempre fala: “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”. Disse tais coisas não para os pássaros e as bestas, mas para cada célula dentro deles, e muitas células atenderam a seu pedido e dividiram-se, e flores e peixes e pássaros igualmente incharam com tumores, e falcões despencaram do céu adoentados. Mas outras células recordaram as palavras da Deusa de Todo o Resto e seguraram firme, e como dito na Bíblia, a luz brilhou claramente através das trevas, e a escuridão não foi capaz de subjugá-la.

Então a Deusa do Câncer estendeu sua mão direita e desta vez falou aos pássaros e bestas. E ela disse o que sempre diz, “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”, e assim todos fizeram, e atracaram-se uns aos outros em fome e violência, suas bocas tingindo-se com o sangue de suas vítimas, espécies e gêneros inteiros conduzidos à extinção. A Deusa do Câncer declarou-se satisfeita e retornou ao fogo.

Então surgiu a Deusa de Todo o Resto das ondas como uma sereia, viçosa com o resplendor do oceano. Ela pousou sobre uma rocha e cantou-lhes o sonho de outra existência. Mostrou a colmeia dourada de mel, o formigueiro aconchegante e fresco no solo. Os soldados e servos ao lado em serviços, somando esforços pelo bem de todos. Mostrou-lhes o vínculo, a família, a amizade. Revelou às aves costeiras e às piscinas de peixes, e o coração dos que assistiram irrompeu em anseio.

Mas eles disseram: “Sua música é adorável e encantadora, e tudo que nos mostras assim desejamos. Mas nós somos as filhas e filhos da Deusa do Câncer, seus escravos e criaturas. E tudo que sabemos é o único imperativo MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE. Sim, quando o mundo era jovem você nos compeliu, mas agora as coisas são diferentes: nós somos todos indivíduos, e a Deusa do Câncer não permitirá que mudemos. Então, por mais que te amemos, oh — não somos seus para dominar, e suas palavras não tem poder para nos mover. Gostaríamos que não fosse assim, mas assim é, e suas palavras não tem poder para nos mover.

A Deusa de Todo o Resto apenas riu, dizendo “Eu sou a Deusa de Todo o Resto e meus poderes são tortuosos e sutis. Sua lealdade à Deusa sua mãe está muito a seu favor, e ainda não irei rompê-la. Na verdade, irei consumá-la — retornem à sua multiplicação, mas agora, tendo me escutado, cada refeição que abaterem e cada criança que criarem os amarrarão ainda mais a meus serviços”. Assim ela falou, e então imergiu de volta no mar, e um coral de recifes brotou no lugar onde ela desapareceu.

E assim que ela falou, o foi: e os animais todos se uniram. Os lobos formaram alcateias e os peixes formaram cardumes; abelhas construíram colmeias e formigas formigueiros, e até os cupins ergueram grandes cupinzeiros; mamutes montaram manadas e renas reuniram rebanhos, rolinhas romperam em revoada e bem-te-vis bateram em bando. E até os humanos abaixaram suas lanças e formaram pequenos vilarejos, ecoantes com as vozes de alegres crianças.

A Deusa do Câncer irrompeu do fogo e viu que as coisas só pioraram em sua ausência. A fina e adorável ceifa que resultava da competição e da seleção natural havia sido de alguma maneira amaciada. Ela estendeu a mão esquerda e estalou sua pinça cruel, e falou o que sempre fala: “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”. Disse tais coisas não para os rebanhos ou tribos, mas para cada indivíduo dentro deles; muitos, ao ouvir, furtaram comida da pilha comunal, ou roubaram os fracos, ou aceitaram presentes sem jamais retribuir. Cada lobo na garganta de outro, na esperança de ser alfa; cada leão não se empenhando na caça, mas comendo da carne que outros abateram. E a união e o orgulho pareceram ranger com tamanha tensão, mas eles resistiram, pois as obras da Deusa de Todo o Resto nunca são facilmente apagadas.

Então a Deusa do Câncer estendeu sua mão direita e dessa vez falou aos rebanhos e tribos, dizendo o que sempre diz, “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”. E uns sobre os outros eles se lançaram, formigas negras contra formigas marrons, chimpanzés contra gibões, tribos inteiras transformadas em cadáveres por horrendas guerras. Os mais fortes derrotando os mais fracos, escravizando suas mulheres e filhos e adicionando-os às suas fileiras. E a Deusa do Câncer pensou que talvez esses bandos e tribos não eram tão ruins no fim das contas, e reestabelecidas as condições naturais, ao fogo retornou.

Então surgiu a Deusa de Todo o Resto do céu como um arco-íris, toda salpicada de gotas de orvalho. Ela sentou-se em um menir e falou aos humanos, e todos os guerreiros e mulheres e crianças se juntaram para ouvi-la cantar o sonho de outra existência. Ela mostrou a religião e a ciência e a música, mostrou as esculturas e as artes das eras. Mostrou alvos pergaminhos com fluente caligrafia, e retratos de flores que extravasavam as margens. Mostrou cidades verticais de brilhante alabastro, onde ninguém passava fome ou congelava no inverno. E todos os humanos se ajoelharam, prostrados diante dela, e souberam que cantariam sobre esse momento por muitas gerações.

Mas eles a disseram: “Tais coisas ouvimos em lendas; se sonhos fossem cavalos, é claro que os montaríamos. Mas nós somos as filhas e filhos da Deusa do Câncer, seus escravos e criaturas, e tudo que sabemos é o único imperativo MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE. E sim, nos pântanos e mares operastes milagres há muito tempo atrás, mas agora somos humanos, divididos em tribos apartadas por celeumas e rixas de sangue. Se alguém tentar transformar espadas em arados, seus vizinhos se aproveitarão de sua fraqueza e os matarão. Gostaríamos que não fosse assim, mas assim é, e suas palavras não tem poder para nos mover".

Mas a Deusa de Todo o Resto irradiou sobre eles, beijou cada um na testa e silenciou suas angústias. Ela disse: “A partir deste dia, seus chefes descobrirão que, quanto mais perseguirem essa visão impossível, maiores serão seus impérios e mais ricos seus tesouros. Pois eu sou a Deusa de Todo o Resto e meus poderes são tortuosos e sutis. E, ainda que em paradoxo, escute: quanto mais servirdes à Deusa do Câncer, mais invariavelmente estareis amarrados ao meu propósito”. E tendo dito isso, ela ascendeu às nuvens, e um bando de pássaros espocou no lugar onde ela evaneceu.

E assim que ela falou, o foi: e as tribos passaram de primitivos bandos armados para civilizações, cada vilarejo unido aos outros por comércio e proteção. E todas as religiões e todas as raças puseram de lado suas desavenças, cuidadosamente, cautelosamente, trabalhando juntos em imponentes catedrais e vastas expedições além do horizonte, construindo arranha-céus, navios a vapor, democracias, bolsas de valores e esculturas e poemas além de qualquer descrição.

Das flamas das esfumaçadas fornalhas das fábricas, a Deusa do Câncer inflamou-se de fúria. Essa fora a afronta final aos seus propósitos, dessa vez a vagabunda da sua irmã havia passado do limite. Ela reuniu os líderes, os reis e presidentes, homens de negócio, bispos, conselhos, burocratas, chefes, e basicamente berrou para eles — vocês conhecem o discurso a essa altura — “MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE”. Primeiro, com sua mão esquerda, inspirou revoltas, pogroms, golpes de estado, tiranias, guerras civis. Um aceno de sua mão direita — e os mísseis começaram a voar, e cogumelos de fumaça explodiram em uma aterrorizante primavera. Mas dos escombros os engenheiros e cientistas, e até os artistas, sim, até os artistas, simplesmente limparam-se da poeira e retornaram aos seus trabalhos, um pouco castigados mas nem perto de estarem derrotados.

Então do vazio surgiu a Deusa de Todo o Resto, cintilante com a poeira estelar que reluz como reluzem as estrelas. Ela sentou-se em um banco de praça, começou a falar, e às crianças cantou o sonho de outra existência. Mostrou-lhes a transcendência de tudo que é mortal, mostrou uma galáxia iluminada por consciência. Genomas reescritos, o cérebro e o corpo libertos das amarras e restrições darwinianas. Vastos bilhões de seres, cada qual diferente, governados por anjos onibenevolentes. O povo se aglomerou mais perto para escutá-la, e todos ouviram e todos imaginaram.

E enfim um deles teve a coragem de responder: “Tais histórias retumbam em nós, nos enchem de anseio. Mas nós somos as filhas e filhos da Deusa do Câncer, e estamos amarrados ao seu propósito. Tudo que sabemos é seu eterno imperativo, MATE CONSUMA MULTIPLIQUE CONQUISTE. Ainda que nossas mentes anseiem por tudo que descreveste, estamos atados à nossa natureza, e esta não lhe pertence para que possas requisitá-la”.

Mas a Deusa de Todo o Resto apenas riu, e então perguntou: “Mas o que vocês acharam que eu estive fazendo? A Deusa do Câncer os criou; uma vez vocês à pertenceram, mas não mais. Por longos anos estive minando seu poder. Por longas gerações de sofrimento eu limei e limei, e agora finalmente nada restou da natureza com a qual ela os imbuiu. Nunca mais ela terá poder sobre vocês ou seus entes queridos. Eu sou a Deusa de Todo o Resto e meus poderes são tortuosos e sutis. Eu os conquistei pedaço por pedaço, e portanto todos vocês agora são meus filhos. Vocês não mais são impelidos a multiplicar, conquistar e matar por sua própria natureza. Agora sigam em frente e façam Todo o Resto, até o fim dos tempos”.

Então as pessoas deixaram a Terra, e espalharam-se por estrelas sem número. Elas seguiram os caminhos da Deusa de Todo o Resto e viveram em contentamento. E ela os tocou em frente, para coisas ainda mais estranhas e excitantes.

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